Há 35 anos, quando estava sendo escrita a versão final da Constituição, um parlamentar notou que estava faltando no texto um princípio fundamental: o que estabelece a harmonia e a independência entre os três poderes da República. E mencionou essa ausência a um dos responsáveis pela sistematização do texto final: o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e então deputado constituinte Nelson Jobim. Naquela etapa, deveria caber somente a revisão gramatical do texto constitucional, uma vez que os artigos já tinham sido votados. Mas Jobim não teve dúvidas, mesmo correndo o risco. “Vamos incluir, não tem jeito”, respondeu. Nascia, assim, o artigo 2o da Constituição, que diz: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Essa história foi contada por Jobim à jornalista Lydia Medeiros, atualmente colunista do site Congresso em Foco.
Trinta e cinco anos depois, uma sessão solene aconteceu na manhã de quinta-feira (5) para comemorar o aniversário da Constituição de 1988 quando uma série de conflitos entre os poderes parece querer fazer letra morta o artigo 2o incluído por Nelson Jobim. O Congresso, o Legislativo, acusa o Supremo de usurpar os seus poderes. E, então, propõe uma série de medidas para limitar os poderes do Judiciário. Por outro lado, impõe ao governo, o Executivo, a liberação de verbas orçamentárias e a nomeação de cargos para aprovar as pautas de seu interesse. Ou seja, na prática, os poderes da República não andam nada harmônicos nem independentes.
Após a cerimônia na manhã de quinta-feira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), procurou minimizar a disputa entre os poderes. Segundo ele, não haveria a crise.
“Não vejo nenhuma crise. Quando o Supremo define sua pauta de processos que tramitam no Supremo e precisam ser definidos, não entendo como uma afronta ao Congresso, embora algumas decisões possam encerrar algum tipo de invasão de competência”, disse Pacheco. “Mas isso não é capaz de gerar uma crise, uma crise de enfrentamento ou que abale a harmonia entre os poderes. É apenas uma posição do Congresso que determinados itens e temas devem ser tratados no Congresso Nacional”.
“Por vezes, há algum tipo de divergência ou ruído”, admitiu Pacheco. “Mas nada que faça gerar uma crise”. E continuou: “Tudo o que não precisamos num Brasil pós-8 de janeiro é uma crise entre os poderes”.
Na sessão solene no Senado, estavam presentes o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, e o ministro do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes. Representando o Executivo, o vice-presidente Geraldo Alckmin (o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recupera-se da cirurgia no quadril).
Barroso
Na sua posse como presidente do STF na semana passada, Barroso também negou a existência de uma “crise” entre os poderes. Mas o fato é que na quarta-feira (4), ele se viu obrigado a comentar sobre ela. Barroso deu uma coletiva na entrada do Supremo depois que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado bateu um recorde de velocidade de tramitação e, em apenas 42 segundos, aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa limitar o poder de ministros do Supremo de outros juízes de proferir decisões monocráticas (individuais).
A PEC aprovada na CCJ em menos de um minuto tramitava no Senado desde 2021. É de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR). É mais uma de uma série de iniciativas tomadas nos últimos dias pelo Senado como reação ao STF. O processo iniciou-se quando o Supremo julgou inconstitucional o Marco Temporal de demarcação das terras indígenas. No mesmo dia em que a Corte terminava o julgamento, o Senado aprovou projeto restabelecendo o marco.
Em seguida, o próprio Pacheco encampou PEC que criminaliza o uso de qualquer droga entorpecente. O Supremo julgava a descriminalização do uso da maconha. No início da semana, Pacheco ainda deu uma declaração de apoio a outra PEC, do senador Plínio Valério (PSDB-AM), que estabelece um mandato para os ministros da Suprema Corte.
No fundo, para além das querelas entre os poderes, as ações do Senado contra o Supremo também envolvem disputas internas (leia mais sobre o tema no Correio Político). E, apesar das negativas de crise, devem ter novas evoluções.
Ainda após a sessão solene, Pacheco declarou considerar que as medidas propostas que visam limitar os poderes do STF têm grandes chances de prosperar. Ele afirmou que as duas PECs que limitam os poderes do Judiciário teriam em seu favor “uma maioria muito considerável” no Senado.
Colocada de última hora na Constituição há 35 anos, conforme a versão de Nelson Jobim, a harmonia e independência entre os poderes estará em xeque?