Coberta sobre o cerrado

Por

A chegada do frio ao Distrito Federal é sempre um acontecimento que escapa às rotinas previsíveis do Planalto. Ele não chega de mansinho: desce. Paira sobre as copas retorcidas do cerrado, enrosca-se nas cúpulas de concreto, infiltra-se pelas tesourinhas como quem retoma um território antigo. Brasília, tão acostumada ao sol disciplinado e ao céu que parece não acabar, subitamente se encolhe e, nesse gesto, revela uma face que poucos reconhecem na correria diária.

O frio aqui tem outra natureza. Não é o rigor cortante do Sul nem o vento úmido do litoral. É um frio seco, preciso, que desenha contornos mais nítidos no horizonte e devolve às manhãs um silêncio quase cerimonial. A cidade acorda mais devagar. Os cafés ficam mais cheios, as conversas ganham um tom mais baixo, como se todos buscassem preservar o calor recém-acordado. Até o tráfego parece menos impaciente quando o ar esfria.

Nas quadras, os ipês, teimosos em sua própria lógica, florescem como se desafiassem a estação, cobrindo o chão com uma espécie de alegria fria. Gente de casaco fino e mãos nos bolsos percorre as entrequadras, e há algo de íntimo nesse deslocamento: como se cada passo carregasse a consciência rara de que o corpo, enfim, sente o clima mudar.

O frio no DF é também memória. Quem cresceu aqui recorda as festas juninas inflamadas por fogueiras tímidas, o cheiro de milho cozido escapando pelas janelas, o ritual de tirar do armário agasalhos que só trabalham alguns dias por ano. Há uma nostalgia própria desse período, como se o tempo se dobrasse e chamasse para perto lembranças guardadas sob o mesmo céu que agora esfria.

E, ainda assim, o frio não congela a cidade, a reinventa. Convida à pausa, ao recolhimento, à observação do que passa despercebido no calor constante. Talvez por isso sua chegada seja tão marcante: ela devolve Brasília à sua condição mais humana, mais permeável, mais sensível. Entre um sopro gelado e outro, a capital respira diferente. E quem vive aqui respira com ela.