Vivemos numa era de contrastes tão intensos que, às vezes, parece que estamos ensaiando para uma tragédia coletiva. O cenário se repete em diferentes países, sob diferentes bandeiras, mas com a mesma essência: a desigualdade escancarada e a banalização da violência. Recentemente, no Rio de Janeiro, um entregador de aplicativo foi baleado no pé durante uma discussão sobre subir ou não até o apartamento de um cliente. O autor do disparo era um agente público, alguém que deveria zelar pela ordem e pela segurança. O caso choca, mas não surpreende. É apenas mais um sintoma de uma sociedade doente.
A violência cometida contra esse trabalhador representa algo maior. Mostra como, em pleno século XXI, ainda convivemos com a ideia de que certas vidas valem menos. Entregadores, motoristas, atendentes e tantos outros trabalhadores de base se tornaram peças invisíveis na engrenagem da conveniência. Suas rotinas são marcadas por riscos, jornadas exaustivas, ausência de direitos e um tipo de desprezo silencioso, que só se revela quando algo sai do "esperado".
A recusa de subir ao apartamento não foi apenas um gesto de dignidade ou cumprimento de uma política da empresa. Foi uma barreira simbólica entre o "cidadão comum" e aquele que acredita ter o direito de ser servido a qualquer custo. A resposta com violência, partindo justamente de alguém treinado para proteger, revela uma inversão perigosa de valores. Quando quem deveria garantir segurança se torna a ameaça, o problema não é mais isolado, é estrutural.
E essa estrutura, infelizmente, não é exclusividade brasileira. No mundo todo, a chamada "uberização" do trabalho transformou pessoas em avatares de aplicativos, removendo delas o rosto, a história e os direitos. Na pressa por entregas cada vez mais rápidas, o mundo esqueceu que há um ser humano por trás de cada mochila térmica. Um ser humano que sente fome, frio, medo. Um ser humano que, ao questionar uma ordem ou exigir respeito, pode ser silenciado à bala.
A resposta da sociedade ainda é tímida. Há manifestações, postagens de solidariedade, campanhas publicitárias simpáticas. Mas tudo isso se esvai diante da falta de mudanças reais. Precisamos de leis que protejam esses trabalhadores, de políticas públicas que os incluam, de uma cultura que os reconheça como parte essencial do cotidiano. Mais do que isso, precisamos reaprender a conviver. Respeitar o outro deveria ser o mínimo. Não se trata de um favor ou de uma questão moral. Trata-se de humanidade.