O Brasil entre Kissinger e Mark Rubio

Por Vinícius Lummertz*

O pensamento de Henry Kissinger continua sendo a referência para compreender a ordem internacional. Seu conceito de Cold Peace, paz fria, descrevia um mundo de tensões permanentes, mas estáveis, desde que respeitadas as esferas de influência. Para ele, o perigo não era a divisão do mundo em zonas de poder — "esferas de influência" —, mas a ilusão de que se poderia expandi-las indefinidamente. Foi essa lógica que o levou a criticar a ampliação da OTAN para o Leste, antecipando que a Ucrânia seria uma linha vermelha para Moscou. A guerra confirmou sua previsão. A lição é clara: sem cálculo sobre os limites de cada potência, a paz cede lugar ao conflito.

Hoje, em plena turbulência global, essa visão de paz fria e esferas de influência encontra eco em Donald Trump, que reposiciona os Estados Unidos perante a América Latina sob uma Doutrina Monroe reformulada. Por esse prisma, a América Latina é espaço vital de Washington a ser demarcada e não deve — ou não deveria — ficar demasiadamente sob influência de adversários como China e Rússia. Mas a engrenagem que sustenta essa estratégia vai além do personalismo de Trump. Um personagem em especial ajuda a entender essa nova política externa: Marco Rubio, senador da Flórida e atual secretário de Estado, filho de exilados cubanos expulsos de Cuba pela revolução comunista de Fidel Castro. Rubio cresceu no meio do trauma da expropriação; sua mãe trabalhou como empregada doméstica. Essa biografia produz o "realismo de Rubio" e molda em aço a sua percepção da região. Para Rubio, Cuba e Venezuela, com seus regimes comunistas e bolivarianos, não são apenas vizinhos incômodos, mas símbolos de uma ameaça existencial.

O realismo de Rubio tem peso político específico. A Flórida foi, por décadas, um "swing state" decisivo, inclusive no traumático episódio da eleição Bush vs. Gore, em 2000, decidido na Suprema Corte. Hoje, é um bastião republicano, central para a estratégia eleitoral do trumpismo. Por isso, Trump não pode se dar ao luxo de contrariar Rubio, nem quer. A linha da Flórida virou linha central da Casa Branca. Essa combinação ajuda a explicar por que o Brasil entrou no radar com tanta força. Canadá e México já receberam recados; Colômbia e América Central, também. A Venezuela continua sob máxima pressão, com Nicolás Maduro "premiado" em US$ 50 milhões, e navios americanos e submarinos nucleares patrulhando o Caribe. Nesse contexto, o que pensam os norte-americanos para o Brasil, a maior economia da região, um dos dez maiores países do mundo, o sétimo em poder paritário de compra, com peso real na balança de poder? Concorde-se ou não com o Presidente dos Estados Unidos, vale a pena provocar?

Os riscos são evidentes. Há riscos econômicos, como tarifas sobre exportações e barreiras disfarçadas em pautas ambientais e de segurança. Há riscos políticos, como isolamento diplomático, se Brasília for vista como ambígua entre Washington e Pequim. E há riscos de segurança, com pressões indiretas na Amazônia e nas fronteiras, associando narcotráfico a terrorismo. A questão central é: o Brasil está fazendo análise de risco? Até aqui, o nosso debate público parece fragmentado em múltiplos episódios isolados de futebol político, misturando a radicalização dos conflitos internos com a pressão das tarifas, declarações e medidas pontuais, sem conectar o contexto maior. Parte da imprensa e da elite política analisa caso a caso, mas se concentra pouco no tabuleiro mundial, que está se reorganizando, que está pegando fogo, e aonde o nosso país poderá virar prêmio.

O Brasil, no entanto, não é um país qualquer. Nossa tradição diplomática é a de uma nação de paz, aberta e capaz de dialogar com todos. A cultura política brasileira sempre buscou o equilíbrio com inteligência. O Presidente Vargas soube negociar a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado das democracias liberais e, com isso, recebemos em troca a indústria de base que permitiu a industrialização do país. Fomos o único país latino-americano a combater os nazistas na Europa, e fomos, na ONU, o primeiro país a reconhecer o Estado de Israel. Participamos de missões de paz reconhecidas mundialmente, construímos uma imagem de nação conciliadora e amiga de todos. Essa herança se soma à nossa identidade cultural: um país de imigrantes, realmente miscigenado, aberto, diverso, que soube conviver com conflitos internos e externos de forma diplomática. Essa tradição nos deu resultados concretos.

O Brasil tem hoje o quinto maior superávit comercial do planeta. Com a China, somos grandes fornecedores; com os Estados Unidos, importantes vendedores e compradores de bens de valor agregado. Os EUA seguem como nosso maior investidor, e a China como nosso maior cliente. Essa posição é estratégica e uma das melhores já conquistadas por um país emergente. Mais além disso, somos um país de grandiosas riquezas, vitais na atual guerra mundial sem nome. O fato é que lá fora sabem muito mais sobre nossas riquezas do que nós mesmos.

O risco, contudo, é esquecermos quem somos e poderemos ser, e, nesta amnésia, perdermos nossas conquistas e perspectivas. Ao agir a reboque dos fatos, sem cálculo estratégico, o Brasil corre o perigo de se colocar no pior dos mundos: hostilizado pelos EUA, desconfiado pela China e fragilizado internamente. A política internacional não é feita de gostos ou preferências, mas de cálculo sobre interesses nacionais. Por isso, Kissinger defendeu a paz-fria. Rubio e Trump também forçam por esse caminho. A China e a Rússia também sabem que suas posições na América Latina são lucro. O Brasil, esquecido de si mesmo, tem condições de enfrentar uma escalada de pressões? Aonde está o cálculo? Afinal, diplomacia é, antes de tudo, análise de risco.

Não podemos jogar tudo fora. Da melhor posição, passar para a pior posição. Isso poderá ser devastador e nos jogar 50 anos para trás. Buscar a Cold Peace, a paz fria, como concebida por Kissinger, é o nosso melhor negócio.

*Cientista Político. Foi Ministro do Turismo e Presidente da Embratur.