ADPF das Favelas: Uso proporcional da força policial e respeito aos direitos humanos
Não há solução simples para problemas complexos. A violência urbana no Rio de Janeiro é um desses problemas. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, resultado de uma composição difícil, reitera, como destacamos no voto, que não pode haver antagonismo entre a proteção de direitos humanos e fundamentais e a construção de políticas de segurança pública compatíveis com a Constituição. Foi a primeira vez que a Corte proferiu um voto único. O consenso exigiu escuta e concessões.
A Corte reconheceu que o Estado do Rio de Janeiro tem demonstrado compromisso em melhorar sua política de segurança pública e garantir proteção para cidadãos e agentes policiais. Entre 2019 e 2023, houve redução nas mortes causadas por agentes do Estado, no número de policiais mortos e nos índices de criminalidade. São avanços relevantes. Mas persistem graves violações de direitos, inclusive por parte do crime organizado. Diante disso, o Supremo determinou medidas complementares e mecanismos de monitoramento.
Abandonou-se a lógica da excepcionalidade das operações policiais, criada durante a pandemia, em favor de um modelo que envolve uso proporcional da força, planejamento prévio e controle posterior, inclusive por parte do Ministério Público, que precisa assumir seu papel constitucional de controle externo das polícias. O Estado de Direito exige controle para proteger a vida.
Por isso, a decisão determinou também: divulgação de dados sobre letalidade; preservação do local de crime com comunicação ao MP; câmeras em fardas e viaturas; perícia independente; assistência à saúde mental dos agentes policiais; critérios para afastamento em casos de morte; regras para buscas domiciliares e operações próximas a escolas; ambulâncias em operações planejadas; relatórios detalhados e rastreio de provas. Tudo para garantir transparência, responsabilidade e prevenção de abusos.
A decisão também quer alcançar a estrutura do crime organizado. A Polícia Federal deverá investigar o tráfico com conexões interestaduais e internacionais, com rastreamento de fluxos financeiros pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras(Coaf). Além disso, o Estado terá que apresentar um plano de reocupação de territórios dominados por facções criminosas.
Para acompanhar tudo isso, deverá ser criado um grupo de trabalho, coordenado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, responsável por relatórios técnicos com dados sobre a política de segurança no Rio. Controle e transparência são essenciais numa democracia.
Vivemos hoje o paradoxo da insegurança permanente. O crime impõe toque de recolher, dita normas, ocupa territórios. Em reação, parte do aparato público atua de forma arbitrária e sem controle. Nenhuma sociedade civilizada pode aceitar essa equação. O Supremo não resolveu, nem poderia resolver, o problema da segurança. Mas fixou balizas fundamentais para enfrentá-lo com legalidade, firmeza e humanidade.
É preciso agora ir além da decisão judicial. Segurança pública não é bandeira da direita ou da esquerda — é uma agenda de cidadania. Se a política não apresentar propostas eficazes e responsáveis, abrirá espaço para soluções autoritárias.
A desigualdade, sem dúvida, está na raiz da violência. Mas pobreza não pode ser sinônimo de desproteção. A mãe no transporte público, o entregador de moto, o jovem que quer voltar vivo para casa — todos têm direito à segurança. A democracia falha quando não os alcança.
É possível e necessário combinar autoridade com legalidade, firmeza com respeito aos direitos. A decisão dos 11 ministros do STF aponta nessa direção. Nem omissão, nem truculência. Apenas o cumprimento da Constituição, para todos, em todos os lugares.
*Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça