Por: Carlos Almeida Filho*

Dirceu como Josef K, entre a antipolítica e a sobrevivência

José Dirceu | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Recente decisão do Supremo extinguiu um dos últimos processos contra José Dirceu. O Tribunal sequer analisou o mérito da questão, exterminando o processo ante o advento da prescrição. Mas isso não impede uma análise serena do quadro, diante mesmo da nota do ex-Ministro: “Tive o meu mandato cassado por razões políticas e sem provas. Sofri processos kafkianos para me tirar da vida política e institucional do País.”

Está certo! E explico.

Kafka faz uma alegoria interessante em “O Processo”, contando como Josef K., acusado de sabe-se-lá-o-quê, se vê às voltas buscando ajuda em instâncias e personalidades obscuras para se ver livre de penalidade que não tem muita noção. Não importa o que faça, seu destino é fatal. O insólito é que tal alegoria acabou se tornando uma realidade palpável após anos de fomento ao lavajatismo: nalgum momento alguém deve (ou pode, ou precisa) ser acusado de alguma coisa e assim, sem nenhuma responsabilidade, se abriam processos, investigações e se deflagraram escutas, interceptações, conduções coercitivas e prisões temporárias. Estas, que demoravam anos, a fazer dos alvos – esse o nome correto –, instrumento de um joguete de pressão, que se configurava como clara tortura, a poderem cantar nos autos tudo aquilo que convinha à instrução, ou melhor, aos interesses dos algozes, políticos incubados, como bem revelou a “Operação Spoofing”.

Dito isso, cabe sempre rememorar que o movimento de antipolítica que cresceu notadamente a partir em 2013, não foi gestado unicamente pelas mentes da Lava-Jato, mas sim por todo um coreto de cúmplices que queria mesmo ver o circo pegar fogo: a grande imprensa bradava que o governo era sinônimo de corrupção, e generalizava: governo é corrupção, levando todos à conclusão de que políticos são, portanto, corruptos; só que o governo alvo era o governo federal, e era petista, “e como pode isso?!” deveriam se questionar todos eles: “como pode, sem a nossa autorização?” e a cantilena seguia dia-após-dia, abrindo espaço para todo tipo de especulação possível, afinal de contas, alguém tinha de ser punido! E para isso a Lava-Jato veio bem a calhar!

Contudo, não se pode subestimar a predictibilidade da estupidez: o ambiente tóxico criado pelo mainstream acabaria por criar o terreno fértil para a criação de toda uma cultura “antissistema”, germinando figuras políticas que jamais encontrariam espaço numa democracia saudável, pois verdadeiros “Macacos Tião” acabaram encontrando espaços nos microfones mais histriônicos para falar suas sandices. E, um fato subestimado pela grande mídia acabou propulsionando todo o tipo de discurso tresloucado por ela mesma fomentado: as redes sociais surgiam no mesmo momento, fazendo com que os discursos reacionários fundados na antipolítica acabassem ecoando por um sem-número de vozes. Pronto! A Era da viralização do absurdo tinha começado! E, naquele momento, o discurso era “O Combate à Corrupção!”, assim mesmo, em letras maiúsculas (ou “cupção”, para alguns).

Então, o cenário estava pronto: era só apontar o dedo, ter um punhado de argumentos – pois nem prova mesmo era necessária – e já se tinha um corrupto apto ser julgado pelo Tribunal da opinião pública, pelas vozes das redes – algo inédito, até então –, o que era suficiente para que muitos julgadores se vissem peados, ou mesmo estimulados, à condenarem qualquer um de forma preventiva. As garantias constitucionais do devido processo legal, da presunção da inocência, ou mesmo do juiz natural, acabaram por eclipsadas por um juízo generalizado de conveniência, e bodes expiatórios foram formados de todas as maneiras. Talvez o exemplo mais dramático desta cultura kafkiana que se tornou o processo penal pirotécnico brasileiro seja o do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier que, acusado por um processo forjado por agentes [que deveriam ser da lei], acabou se suicidando depois de ter a honra arrasada. As acusações eram falsas!

Só que a Caixa de Pandora já estava aberta e todo processo penal (e afins) foi contaminado pelo mesmo punitivismo: condenar primeiro para julgar depois, quando muito. E olhe onde isso chegou, pois até defensores foram alvos junto com seus clientes, sendo o caso da advogada Ana Tereza Basílio o mais absurdo, vítima da turba lavajatista, demorou anos para se ver livre de um processo urdido com as finalidades mesquinhas de sempre. E isso foi além, pois todo aquele com raciocínio garantista passou a ser perseguido, veja-se o que fizeram, por exemplo, com o juiz Luís Carlos Honório Valois, defensor intransigente da Constituição e de suas garantias fundamentais, que teve contra si orquestrada ação destinada ao desmonte de sua imagem, mas conseguiu se demonstrar inocente do que lhe acusavam – a muito custo. Ou mesmo contra mim, que respondo a uma ação irracional, proposta por uma PGR manietada, contra prova dos autos: isso mesmo, a PF devassa minha vida e conclui pela minha inocência, mas o lavajatismo fez a PGR falar que não são necessárias provas para acusar quem quer que fosse, e que eu poderia provar minha inocência na instrução! E esta é a distopia onde chegamos: ter de provar inocência!

Mas a raiva mesmo era do PT e de tudo que ele representava, então todo mundo precisava expiar. Então todos os reacionários – e neofascistas, e oportunistas, e afins – se juntaram à uma caça às bruxas com nítida intenção de desmonte, e, para isso, qualquer argumento servia, pois como a Spoofing mesmo mostrou a mídia alimentava as investigações, que alimentava a mídia, num ciclo instrumental ímpar. Dentre todos os alvos, Dirceu era o mais visado, pois, homem-forte do PT, estava cotado para a sucessão do presidente Lula ao fim de seu segundo mandato. Então, para pôr fim a um projeto de continuidade – ou de Poder, como alguns preferiam alcunhar –, era crucial dar cabo de sua carreira política, e nada viria mais a calhar que as operações midiáticas realizadas pela Lava-Jato: prisões lhe foram determinadas, processos foram abertos e grande ameaça aos seus defensores foram feitas. A morte política se decretava com a tão-só abertura dos processos e com o estardalhaço da imprensa. A indiferença para com o direito se expressava com o “se for inocente, poderá provar”: a lógica constitucional tinha se invertido, permitindo que, para homens públicos (e depois para qualquer um), o linxamento moral pudesse acontecer mesmo que nenhuma prova pudesse existir.

Aí, nesse ponto, se pode ponderar: “ah, mas a extinção desse processo se dá por prescrição…”, sim, pois a utilidade da continuidade processual não permite o prolongar de algo que não servirá para mais nada depois, mormente quando o conteúdo é tão paupérrimo como todos os demais que serviram de coro na litania lavajatista, como é o caso do mais candente, o caso do triplex atribuído ao presidente Lula, tão pobre e mal-explicado, que até os presentes dias seu prolator não conseguiu responder ao desafio do Reinaldo Azevedo: apontar em que linhas estão as indicações das provas contra o presidente. Não existem lá, como não existem cá.

Mas já era muito tarde, embalada na antipolítica, criada pela mídia hegemônica e turbinada pelas redes sociais, a horda neofascista que acabou ingressando nos espaços públicos, notadamente com as eleições de 2018, colocando a Democracia brasileira e o próprio conceito de Direito e de Estado na berlinda. E, de novo, não se deve subestimar a predictibilidade da estupidez: aqueles que se diziam “contrários a tudo isso que está aí”, fizeram absurdos tão graves aos que acusavam e foram além, tentando a subversão do estado constitucional com tentativas mambembes de golpe. A conta veio: perdeu-se o mandato do representante maior da horda e inúmeros processos criminais foram instaurados para apuração de seus crimes.

E é aí que o insólito acontece, pois estes, que diziam que direitos humanos eram o “esterco da vagabundagem”, começaram a apelar até aos Céus para que as garantias constitucionais que ajudaram a fustigar lhes fossem garantidas: juízo natural, devido processo legal, duplo grau de jurisdição, presunção de inocência, responder o processo em liberdade e medidas alternativas à prisão! Veja-se só, nunca antes na história desse Brasil, tantos defensores de direitos humanos como agora!

Ao Dirceu, que mesmo sofrendo todo o enxovalhamento público, tortura psicológica pelas prisões indevidas – e contrárias à própria legislação processual penal –, mas que se manteve firme e leal nesses longos anos de injustiça, só se aplica, agora, o pouco daquilo que a turba bolsonarista clama somente para si: direito ao devido processo legal, ou seja, direito.

Mas quem lhe devolve o tempo perdido? Quem devolve a vida do reitor Luiz Carlos Cancellier? Quem irá reparar os prejuízos que a irracionalidade causou nesse nosso país?

Dirceu foi Josef K., mas sobreviveu.

*Doutor em Direito, pesquisador e Defensor Público do Estado do Amazonas