Por: Fernando Molica

Lula e a falta de sintonia

Para entender o que se passa na cabeça dos brasileiros que fizeram sua popularidade cair, o presidente Lula deveria talvez pensar menos em Jair Bolsonaro e mais no que permitiu ao ex-capitão encarnar um desejo de mudança que começou a varrer o país há cerca de uma década. 

Bolsonaro e seus aliados não criaram a adesão a teses conservadoras, principalmente no campo do comportamento. Mas eles perceberam o fenômeno e o amplificaram. Eleito numa disputa bem dura, Lula parece que ainda não conseguiu se sintonizar com boa parte dos cidadãos, permanece um certo chiado, como os daqueles antigos aparelhos de rádio. Algo que tem a ver com sua dificuldade de se situar num país que mudou tanto em tão pouco tempo.

A ascensão e a consolidação do petista como liderança nacional ocorreram num cenário bem diferente. Recém-saído de uma ditadura, o Brasil buscava se recompor com setores que haviam sido oprimidos, como trabalhadores urbanos e rurais e indígenas.

Temas ligados ao leque da diversidade — direitos de mulheres, negros, homossexuais — ganhavam força, eram legitimados por setores da opinião pública ligados a uma pauta progressista respaldada, de um modo geral, por grandes veículos de comunicação. 

Lula hoje critica a  associação entre religião e política, mas ele e o PT foram muito beneficiados por uma Igreja Católica em boa parte comprometida com a Teologia da Libertação, uma visão do Evangelho de viés socializante. Setores importantes do clero foram decisivos para legitimar o PT e para estruturá-lo.

Financiados pelo imposto sindical e animados pelas mobilizações que vinham do ABC paulista, sindicatos mostravam força, promoviam sucessivas greves e, assim como os teólogos da libertação, reforçavam a ideia de luta coletiva: a vida de cada brasileiro ficaria melhor na medida em que houvesse avanços gerais.

Aos poucos, a ideia de companheiro — aquele com quem se divide o pão — foi dando lugar à lógica do empreendedor, farinha pouca, meu pirão primeiro. O olhar que privilegiava o coletivo foi dando lugar à busca pelo sucesso individual, num movimento que anda de braços dados com o viés proclamado por evangélicos, o de que a prosperidade é uma benção divina. 

Os escândalos de corrupção gestados em governos petistas e as mudanças radicais no universo do trabalho contribuíram para as mudanças. O PT que em seus primeiros anos insistia no tema da honestidade na vida pública se revelaria muito menos intransigente em relação ao comportamento republicano de aliados e de pessoas do próprio partido. 

Terminara também o tempo em que um retirante de baixa instrução como Lula poderia ingressar e crescer num pujante parque industrial. A opção pelo trabalho por conta própria ganhou impulso com a falta de alternativas.

O impacto da modernidade não foi bem digerido por boa parte da população, o que antes era visto como manifestação de solidariedade a pessoas com comportamento não hegemônico passou a ser encarado como uma ameaça traduzida na fantasia batizada de kit gay: muita gente quis acreditar nesta e em outras tantas mentiras.

Muita gente passou a odiar o PT por suas qualidades, não por seus defeitos e erros, mas o crescimento da extrema direita não pode ser reduzido a isso. Chamado de encantador de serpentes por Ciro Gomes, Lula percebe que muitos de suas mágicas já não fazem tanto sucesso. Nesses quase 15 meses de novo governo, coleciona alguns bons índices, soube recolocar o país num padrão razoável de institucionalidade, mas isso ainda é pouco. Não basta reclamar da programação feita por seus ministros, é preciso entender os recados de um público que deixou o rádio e migrou para a vida digital.

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