O governador Cláudio Castro tem martelado à exaustão sobre os aspectos perversos da dívida do Rio com a União, estimada hoje em mastodônticos R$ 178 bilhões. Durante audiência com o ministro Fernando Haddad, alertou sobre a absoluta impossibilidade de o estado pagar, em 2024, cerca de R$ 8 bilhões, como prevê o leonino Acordo de Recuperação Fiscal imposto com arrogância e truculência por Paulo Guedes, o trágico ministro da fazenda.
A retórica contundente do governante fluminense - pontuada por advertências sobre a possibilidade de quebradeira, insolvência do erário estadual e outros efeitos desastrosos como atraso de salário de servidores - está lastreada em números que comprovam o completo desequilíbrio da relação entre a União e o estado do Rio de Janeiro.
Para a compreensão lógica do fato é necessário remontar aos anos 90, quando a dívida fluminense disparou na esteira da privatização do Banerj. Mal administrado, o banco público teve seu passivo coberto pela União a fim de que pudesse ser transferido à iniciativa privada. Numa operação triangular de crédito, a instituição financeira foi saneada, mas o valor despendido pelo governo federal foi somado ao montante da dívida pública do estado.
Através do famigerado Proes, de Fernando Henrique Cardoso, o Banerj - livre de passivos e outras amarras, portanto, absolutamente hígido - foi adquirido pelo Itaú. A conta foi espetada no bolso do povo fluminense com o substancial incremento da dívida pública do Rio. O socorro ao banco em frangalhos representa hoje cerca de 60% da dívida.
Não bastasse esse histórico maldito, que evidencia o ônus imposto à sociedade para desonerar o Banerj a fim de que pudesse ser repassado aos banqueiros, a dívida tem outras questões inaceitáveis - perversas e contrárias aos interesses republicanos do povo fluminense.
Em 2022, às vésperas do pleito presidencial, Jair Bolsonaro fez aprovar a lei federal 194, com a redução das alíquotas de ICMS dos combustíveis, telecomunicações e energia. Eleitoreira, a medida trouxe um rombo na arrecadação estadual de cerca de R$ 3 bilhões naquele ano e de cerca de R$ 10 bilhões em 2023. Houve, portanto, um total desequilíbrio econômico-financeiro nas contas estaduais por iniciativa do governo central. A prevalecer a lógica e o bom senso, isto seria suficiente para se alterar as regras de pagamento da dívida.
Mas há outras aberrações neste imbróglio que fizeram disparar nosso débito junto ao Tesouro Nacional em até R$ 19 bilhões em 2023. Como denunciara Cláudio Castro, o governo federal historicamente se comporta como uma espécie de agiota oficial da Nação, com práticas que beiram ao crime usura na relação com os estados.
Liderada pelo deputado Luiz Paulo, parlamentar de atuação independente, a CPI da dívida pública da Alerj mostrou que se o montante do débito tivesse sido corrigido apenas monetariamente seu valor não ultrapassaria R$ 63 bilhões - menos da metade dos atuais R$ 185 bilhões. A União dispensa aos entes federados, portanto, um tratamento próximo ao adotado pelo FMI ou pelas instituições financeiras internacionais diante de seus credores. É usurária, avarenta, postura inaceitável diante do desafio comum de produzir crescimento econômico sustentável com avanço social - tarefa precípua do Estado brasileiro.
Um dos mais preparados estudiosos do tema, o deputado Luiz Paulo mostra outra inconsistência na cobrança. Nos últimos dez anos, o PIB do país cresceu 0,5%, e o do estado do Rio foi negativo. Isto seria absolutamente incompatível com juros de 5,25 ao ano fora correção. Sem crescimento da economia estadual não como há se fazer frente à cobrança injusta e leonina, a menos que se corte totalmente os investimentos e paralise a máquina pública em desfavor do interesse da sociedade. Em outras palavras: redução de salários dos servidores, corte nos investimentos em saúde, educação e segurança pública. Caos, resume.
Formulados com base neste modelo perverso, os acordos de recuperação fiscal são peças de ficção, que os governadores aceitam exclusivamente por conta da carência inicial, mas certos de que mais à frente terão de ser renegociados, pois impagáveis. A União, por sua vez, sabe da impossibilidade de cumprimento das regras, mas se deixa docilmente enganar numa farsa de suposto rigor fiscal.
Parlamentar federal fluminense mais apetrechado para o debate, o deputado e economista Pedro Paulo (PSD) foi contatado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e pelo governador Cláudio Castro para a formulação de uma proposta conciliadora. Ele prepara projeto de imediata alteração das regras diante do flagrante desequilíbrio contratual decorrente da redução das alíquotas de ICMS. A despeito de advogar rigor fiscal nas contas públicas, Pedro Paulo está convencido de que a queda de arrecadação provocada por iniciativa da União impõe a mudança nas cláusulas de pagamento.
O parlamentar defende ainda uma mudança conceitual no tratamento da dívida da União com estados brasileiros mais endividados. Não por acaso São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul - responsáveis por mais de 80% do PIB nacional. A pujança econômica de São Paulo é tão avassaladora que, mesmo diante de critérios assimétricos e injustos, o estado consegue cumprir as parcelas da dívida. Os demais estão tecnicamente falidos e vivem de espasmos provenientes de receitas extraordinárias, como, por exemplo, a privatização da Cedae.
O único caminho a seguir seria a federalização da dívida com um rigoroso cardápio de compromissos aos governos estaduais. Na medida em que os estados cumprissem suas obrigações, a União federalizaria parcelas crescentes do débito.
A situação é crítica e sua solução é inadiável. A União não pode continuar atuando como algoz dos estados que mais contribuem para o crescimento da economia nacional. Há de se encontrar um caminho que garanta o reequilíbrio da relação com os entes federados.
Se nada for feito rapidamente, teremos um 2024 sombrio. O Rio não pode voltar a ameaça de salários atrasados, hospitais paralisados, escolas em pandarecos e forças policiais fora das ruas.
A três meses do fim do ano, este é o nosso mais importante desafio. Não se trata de ajudar o governador Cláudio Castro. As forças políticas do Rio precisam se unir para salvar o estado e garantir minimamente a prestação de serviços públicos essenciais à sociedade fluminense. Neste momento, é necessário, mais do que nunca, grandeza política e espírito público.
*Editor da Agenda do Poder