De caso com a liberdade

O delicado 'Os Amores Dela', já em cartaz, analisa o querer celebrando a força feminina

Por

Charline trafega pela solidão numa trama agridoce

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Estreante na direção longas-metragens, conhecida por participações como atriz em (bons) filmes como "O Que Está Por Vir" (2016), a cineasta Charline Bourgeois-Tacquet conseguiu que a Semana da Crítica de Cannes se rendesse a seu primeiro trabalho como realizadora, "Os Amores Dela" ("Les amours d'Anaïs") e o incluísse em sua seleção oficial.

Saiu de lá cheia de elogios para um ensaio sobre a afirmação da liberdade feminina que, hoje, fisga o público brasileiro, em cartaz no circuito nacional, distribuído pela Imovision.

De uma delicadeza de encher os olhos, sua narrativa acompanha o triângulo amoroso que a jovem Anaïs (Anaïs Demoustie) com um homem mais maduro (Denis Podalydès) e com a namorada dele (papel oferecido à atriz e diretora Valeria Bruni Tedeschi). Anaïs não pensa em ser mãe, é avessa a laços matrimoniais e só pensa em construir uma vida profissional sólida. Mas seu viver vai ser atropelado pelo Cupido, isso até que seus ímpetos libertários puxarem os freios da paixão.

Na entrevista a seguir, concedida via e-mail ao Correio da Manhã, Charline abre uma reflexão sobre seu lirismo.

Existe uma palavra em português que se chama "pertencimento". Ela dá conta da nossa condição de nos sentir parte de alguma coisa, de pertencer a algo, a um grupo. Qual seria o pertencimento de Anaïs e qual é a dimensão de solidão que a cerca?

Charline Bourgeois-Tacquet: Creio que Anaïs tem dificuldade em sentir que pertence a qualquer coisa. Ela não se reconhece nos modelos tradicionais da sociedade em que evolui. Não tem emprego, não quer ser mãe, não sabe exatamente o que fazer quando envelhecer. Ela não é uma pessoa que vive à margem, mas é uma pessoa muito livre, e esta liberdade está sem dúvida ligada a uma forma de solidão. Ela tem uma concepção bastante romântica da vida, quer experimentar coisas fortes, tem uma grande sede de intensidade. Diria que a sua "pertença" mais óbvia é a sua total fidelidade aos seus desejos. Ela é capaz de os ouvi-los e segui-los, mesmo quando eles a levam por caminhos inesperados. É engraçado abrir esse papo falando sobre a solidão: percebeu imediatamente o aspecto melancólico do filme, enquanto a maioria das pessoas é primeiramente atingida pela sua dimensão cômica. Mas eu queria que os dois registos coexistissem, como na vida.

Como a saga de Anaïs se alinha com os pleitos femininos e feministas da atualidade?

Escrevi esta personagem sem me colocar numa perspectiva militante ou mesmo política. Escrevi a partir do que eu era, do que gostava, do que me estimulava. Mas, depois de acompanhar o filme durante o seu lançamento na França, e em muitos outros países, percebi que o público era muito sensível à grande liberdade da Anaïs, e fiquei satisfeita. É uma jovem mulher que segue o seu desejo, que se permite viver como deseja, sem esperar pela permissão de ninguém, e sem se sentir culpada. Nisso, ela encarna um ideal feminista. O fato de ela não querer filhos, e de assumir isso, também causou uma grande impressão nas pessoas. Isso pode ofender alguns espectadores, mas, tudo bem. Uma mulher pode não querer ter filhos e assumir esta escolha. E a sociedade deve aceitá-la.

Como foi a experiência de dirigir dois atores com vasta experiência nas telas, como Valeria Bruni Tedeschi e Denis Podalydès?

Fiquei um pouco intimidada no início, especialmente com Valeria, porque Denis só chegou após alguns dias de filmagem, por isso, tive tempo para ganhar confiança. Mas Valeria estava lá desde o primeiro dia, e fiquei um pouco apreensiva, especialmente porque adoro os seus filmes. Já vi 'Um Castelo em Itália', dirigido por ela, umas três ou quatro vezes. No fim das contas, dirigi Valeria e Denis como fiz com todo o elenco. Eles gostaram do roteiro e decidiram confiar em mim. Isso me permitiu-me ser muito livre na minha forma de os dirigir.

Como você avalia o cinema francês da atualidade, no contexto da produção?

Charline Bourgeois-Tacquet: Tenho 36 anos de idade, formei-me via cinefilia na adolescência, num mundo onde o cinema ainda era algo sagrado, e comecei a sonhar em fazer filmes por volta dos 25 anos, projetando-me nessa realidade da minha formação, não noutra. Mas as coisas mudaram numa velocidade louca, especialmente com os dois grandes confinamentos em 2020. Quando lancei o meu filme na França, em setembro de 2021, reparamos que as plateias tinham abandonado as salas de cinema. Isto é algo que me entristece e terá consequências dramáticas na forma como os filmes são financiados em França, onde, até agora, temos o benefício de um sistema extraordinário através do Centro Nacional de Cinematografia, o CNC, que funcionou, em parte, com base em receitas de bilheteira. Além disso, cada vez mais plataformas estão a financiar séries em Paris. Isso traz problemas pros filmes feitos para a sala de cinema. As plataformas têm muito dinheiro e pagam muito mais por técnicos e roteiristas. Isso significa que os técnicos podem já não querer trabalhar para o cinema, onde, inevitavelmente, terão soldos menores. Com isso, cineastas começam a ter dificuldade em filmar em Paris, porque o custo das filmagens aumentou três ou quatro vezes ou mais. Isto é muito preocupante.