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Vá a você

Por Daniel Guanaes*

A cada mês que começa, ano após ano, é comum vermos as pessoas se tornarem mais reflexivas quanto ao que viveram e ao que desejam viver. É como um novo ciclo, que faz a nossa vida, estimulada por metas, ser analisada a cada mudança do calendário como se precisássemos conferir se cumprimos o que almejávamos. Também dedicamos tempo a planejar o que pretendemos realizar.

Nessa lida cotidiana de escuta dos anseios humanos, um dos desejos com os quais mais me deparo nas partilhas é das viagens que as pessoas sonham fazer. A ideia de conhecer novos lugares, fazer percursos, desbravar culturas e trilhar caminhos parece estar entre as que mais motivam o ser humano.

De alguma forma, é como se os nossos deslocamentos expandissem o mundo. Não que eles alterem as dimensões da Terra, obviamente. Refiro-me à expansão do que chamamos de "nosso mundo". Falo da sensação de ampliação dos limites que experimentamos sempre que, em nossas peregrinações, descobrimos que há mais coisas do que imaginávamos por aí.

Da mesma forma que somos instigados a desbravar o universo que nos cerca, também há uma certa inquietação humana a respeito do universo que nos habita. Encorajar pessoas a fazerem percursos para dentro de si sempre foi uma pauta presente nas religiões, desde os seus registros mais antigos. Nas tradições de fé que se ancoram na Bíblia judaico-cristã, uma história em particular é simbólica deste incentivo ao autoconhecimento.

No livro de Gênesis, quando Deus diz a Abrão "sai da tua terra", a expressão hebraica que aparece no registro é "lech lechá", que literalmente significa "vá a você". Ou seja: para além de um percurso a um lugar estranho, Deus instiga Abrão a ter coragem de caminhar e conhecer os territórios desconhecidos da alma.

Se pararmos para pensar, cada percurso externo que fazemos nos coloca também diante da possibilidade de nos movimentarmos internamente. As estradas da vida nos permitem conhecer nuances da nossa própria existência. Descobrimos limites e os reinventamos, aperfeiçoamos virtudes, identificamos defeitos. O processo é infindável. Quanto mais nos movimentamos, tanto mais temos chance de nos descobrir.

Eu também tenho a minha lista de desejos com as viagens que pretendo fazer. No entanto, lembrar-me do "vá a você" na história da peregrinação de Abrão é, de alguma forma, rememorar que a verdadeira romaria é aquela que acontece pelas estradas que nos habitam. Esses são os deslocamentos mais importantes que fazemos em vida.

Seja qual for o seu planejamento, vá a você. Não é sem motivo que no clássico "Tocando em Frente", Almir Sater e Renato Teixeira nos ensinam a cantar "pela longa estrada eu vou; estrada eu sou". Nesta vida, desbrava o mundo de verdade quem, seja por onde for, sempre caminha em direção a si.

*PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo clínico.

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