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Jogo de criar e acreditar

Por Thamiris de Azevedo

O espetáculo teatral Fricções, idealizado por Felipe Heráclito e dirigido por Rodrigo Portella, chega em Brasília entre os dias 2 e 5 de outubro, no Teatro Royal Tulip. A atriz Vera Holtz sobe ao palco ao lado do músico italiano Federico Puppi em uma montagem que eles mesmos classificam como um "duólogo", onde existe uma proposta marcada pela interação com o público e pela improvisação. Com mais de 350 apresentações, Fricções propõe uma reflexão profunda sobre o existencialismo. A peça recebeu 22 indicações a prêmios e conquistou importantes reconhecimentos, como o Prêmio Shell de Melhor Atriz e o Prêmio APTR de Melhor Atriz, ambos para Vera Holtz, além do APTR de Melhor Música, concedido ao músico Federico Puppi.

Inspirado no livro "Sapiens - uma breve história da humanidade", do professor e filósofo Yuval Noah Harari, Portella convida o público, por meio do jogo teatral que criou, a refletir sobre a realidade e as ficções, envolvendo tanto intérpretes quanto o público. Ao ser chamado para escrever e dirigir, conta o diretor, imaginou em selecionar fragmentos do livro e transformá-los em uma peça deliberadamente "espatifada". O objetivo, segundo ele, era conduzir o espectador pela mão e levá-lo a percorrer o território da fábula.

Em entrevista conjunta, Vera Holtz e Frederico Puppi conversam com o Correio da Manhã sobre os bastidores na construção dos personagens, ocasião em que também revelam que é uma interpretação de si mesmos.

Vera conta que não conhecia a equipe de produção, e que se surpreendeu com a conexão e união de todos. Segundo a atriz, com 40 dias de ensaios para entrar em cena, a admiração e a paixão pela obra fricções concretizou o trabalho, ressaltando que é um espetáculo contínuo com uma construção progressista.

"Eu já conhecia o livro e já tinha o apresentado várias vezes. Quando fui chamada eu não entendi como o Rodrigo faria um recorte do livro, que é 'cabeçudo', sabe? Grande e de difícil compreensão. É preciso realmente se dedicar a ele. Então, esse processo rápido, apaixonado, foi o que marcou o início de Fricções. É uma adaptação para o teatro com as devidas inserções pessoais. E aí a maravilha: é subjetiva. Tudo é meio atropelado, ao mesmo tempo que o processo da criação do trabalho foi uma formulação das pessoas que estavam com a gente", afirma.

Holtz explica que durante o processo de construção da peça, a cada semana o espetáculo era apresentado para um grupo de provocadores envolvidos com a leitura do livro.

"Fomos atualizando a obra e o discurso, em uma constante mudanças. A obra se completa estreando com a participação do público, quando apresentamos no Rio de Janeiro. Posteriormente continuamos em teatros pequenos, que nos ensina outras coisas. Até fomos para uma vez Brasília também. Aprendemos com a relação com o povo. Nós temos um roteiro a seguir, mas em cada dia do espetáculo nós temos comportamentos distintos com a energia vibracional da plateia. Essa química é pelo reconhecimento com o outro. O Frederico sempre fala para eu me divertir antes de entrar em cena", continua a atriz.

Ela também revela que durante esse jogo proposto na peça, há uma leitura do público por meio de códigos teatrais.

"A peça se baseia em códigos teatrais que são estabelecidos desde a primeira cena, que são códigos de imaginação. Não vou dar o 'spoiler' de quais são, mas eles são dados logo no começo. Ou não. E aí que começa o jogo", diz.

Puppi conta sobre o processo musical, que também tem o intuito de provocar e interagir com o público, complementando esse "duólogo" em uma conversa com o silêncio, vibrações sonoras e em uma conversa, entre a ficção e a realidade.

"Estávamos buscando uma colaboração. Música é uma linguagem. A música tem gramática, forma escrita, frases, funções, lógicas... Então, são duas linguagens do que o Homo sapiens criou. Nossa linha de raciocínio foi no sentido de que o que não pode ser dito pela palavra, é dito pela música. É um complemento dramatúrgico em duas linguagens", esclarece.

O italiano ressalta que durante a peça, é preciso acreditar no jogo. Para ele, o assunto do espetáculo é a capacidade do ser humano de criar ficções coletivas e acreditar nelas para conseguir cooperar.

"Consideramos ser a grande habilidade que o Homo sapiens. Os personagens da peça, na verdade, são os formuladores do jogo. Não estamos dizendo que a ficção é falsa, mas é um dispositivo intelectual humano" declara.

Vera Holtz complementa destacando que na evolução do Homo sapiens, o homem sempre sobreviveu de ficções.

"O homem precisa de alguma crença para viver em cooperação. Não sobrevive sem ficções. De uma forma isolada, por uma perspectiva poética e filosófica. Esse é momento que refletimos se o que é real é ficção. Por exemplo, se você fala que existe o Estado, então ele existe. A ficção não é falsa, ela existe pois foi inventada. A partir do momento que eu crio, passo a acreditar. O homem cria Deus, adora catologar tudo, e foram invenções. Eu vivo nesse estado. Eu acredito nisso. Essa é a realidade ficcional do Homo sapiens "avalia a atriz.