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Mistérios das tranças afro serão mapeados por projeto em Brasília

Mais que mera questão estética, as tranças escondem códigos e informações ancestrais | Foto: Gilberto Soares/Acervo Pessoal

Por Gabriela Gallo

Você conhece alguém que gosta de trançar os cabelos? E você sabia que penteados em mulheres estão diretamente ligados à cultura, tradições e ancestralidade de um povo? Essa é a proposta do projeto "Tranças no Mapa". Idealizado pela pesquisadora Layla Maryzandra, o projeto faz parte da pesquisa de campo do Programa de Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT) da Universidade de Brasília (UNB). Com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), a proposta é construir a 1ª Cartografia SocioCultural de Trancistas do Distrito Federal e Entorno.

Não se trata apenas de uma mera questão estética. As tranças têm um importante significado histórico e antropológico. Elas contam histórias. Na África, o modo como os cabelos eram trançados trazia informações sobre se aquela mulher era solteira ou casada ou sobre qual era a sua origem. Quando a diáspora trouxe os africanos para o país como escravos, ela ganhou outros códigos e significados. Tornaram-se verdadeiros mapas. O local onde hoje está o Distrito Federal e seus arredores era uma região de quilombos. E as tranças formavam indicações de caminhos, rotas de fuga para chegar aos quilombos.

Em entrevista ao Correio da Manhã, Layla comentou que, de certa forma, ela já acreditava que a pesquisa de mestrado dela fosse ser financiada. "Estou trabalhando nisso há 12 anos, tenho plena consciência da importância desta pesquisa para contribuição de outras fontes nos estudos, ações e políticas públicas voltado para população negra", declarou a mestranda.

O projeto

O público-alvo da pesquisa são mulheres negras a partir dos 18 anos que tenham mais de dois anos trançando. O projeto estreou no dia 17 de abril e segue até meados de agosto e setembro. Além do Mapa, a iniciativa é um braço de um projeto mais abrangente, o Fios da Ancestralidade.

A primeira etapa é coletar informações através de um formulário online para mapear a quantidade, localização, e diversas outras informações das trancistas da capital federal. Em agosto, será realizado uma oficina presencial em seis etapas, uma oficina online e a construção de um Mapa Afetivo onde serão contadas as histórias orais de trancistas negras: em tecido, fotografias e no audiovisual.

Segundo a idealizadora do projeto, os próximos passos são sistematizar os dados coletados e inseri-los nas narrativas dos capítulos da dissertação de Mestrado. Esses dados também serão usados para construir em cima disso uma peça direcionando informações sobre os modos de saber e fazer da prática de trançar, para ações e políticas públicas para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Ancestralidade

Segundo Layla, a prática de trançar "está vinculado a modos de vida das comunidades urbanas e tradicionais negras".

"No início do século XV, os penteados afros já funcionavam como um portador de mensagens na maioria das sociedades da África Ocidental, Oriental e Central, regiões de povos iorubanos [do povo Iorunbá, na Nigéria], fanti-ashanti, bantos, os mesmos que foram sequestrados para as Américas, em especial para o Brasil, país que recebeu em torno de 4 milhões de escravizados", disse a pesquisadora.

Ela explicou que "as tranças faziam parte de um complexo sistema de linguagem, usadas para indicar o estado civil, a idade, o segmento religioso, a riqueza e a posição de uma pessoa dentro da comunidade".

Ela ainda explica como a prática de trançar os cabelos acompanha a história do negro desde a África. "Pentear cabelos é um ofício tão antigo e tão importante quanto uma atividade de subsistência, o espaço da cabeça identifica a pessoa, têm esse poder de falar sobre a pessoa, sobre a sua origem, afinal é o nosso Orí [na religião candomblecista, é o orixá que carrega a essência de uma pessoa ao longo da vida]", detalhou a pesquisadora.

A professora de dança, Karina Felix Santos do Nascimento, que trabalha como trancista há sete anos no Distrito Federal, concorda com a pesquisadora. Karina enfatizou que as tranças "são uma cultura que foi passada de mãe para filha e essa filha passou para filha dela que chegou até nós hoje", comenta.

"A cultura preta foi muito oral desde sempre. Então, eu acredito que estes eram os momentos que os mais velhos tinham para poder passar os seus conhecimentos para as gerações mais novas. Então, não era só um momento de autocuidado, era um momento de aprendizado", destacou Karina.

Ela conta que as tranças em seus cabelos começaram na infância. "Desde criança, minha mãe me trançava e às minhas irmãs para irmos à escola, para facilitar o nosso cabelo crespo. E a gente não tinha noção do quanto aquilo era representativo, escutando o quanto era ancestral também", ela relata.

Se nas comunidades africanas as tranças eram usadas para identificar e diferenciar mulheres de tribos diferentes, no Brasil elas ganharam ainda mais significados dentro da estratégia de sobrevivência e busca da liberdade. Durante a época da escravidão, as tranças das mulheres eram usadas para traçar rotas de fuga para os quilombos. Além disso, as mulheres escondiam grãos de arroz e sementes dentre as tranças para garantir a sobrevivência. Em alguns casos, escondiam até ouro entre os cabelos das africanas, para que tivessem condições de ter um mínimo de renda para sobreviverem em eventuais fugas.

Trabalho

Karina conta que, depois de muitos anos alisando os cabelos, em 2011 ela tomou a decisão de assumir dos cachos do cabelo crespo pouco antes de entrar na faculdade de dança. E ao ingressar na faculdade, ela participou de um projeto que mudou a vida dela. "Eu comecei a participar de um projeto de pesquisa que falava sobre a trajetória da mulher negra na dança. Estudei sobre negritude, sobre as raízes culturais e aí eu decidi de vez que não queria mais alisar o cabelo", ela conta.

Ao tomar a decisão, Karina terminou o processo da transição capilar. Esse processo capilar é lento e é praticado por mulheres que, após anos usando químicas no cabelo para deixá-lo liso, esperam o cabelo crescer completamente natural e cortam as partes lisas, que é onde ainda há a química. As tranças começaram em um processo de autoaceitação e depois viraram um trabalho. Hoje, além das aulas como professora de dança, ela atende em média 30 pessoas por mês.

"Hoje, eu atendo muitas mulheres que passaram por tratamento contra câncer e estão redescobrindo a textura dos seus fios à medida que o cabelo vai crescendo de novo. Então, a relação que eu tenho com o meu trabalho é de muito afeto, de autocuidado, e principalmente, de ancestralidade", disse Karina.