A socióloga e cientista política Jacqueline Pitanguy, coordenadora executiva da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), afirma que o Brasil precisa avançar no direito à saúde das mulheres, à autonomia, à igualdade e à não discriminação, que são pilares dos direitos humanos e estão intrinsecamente conectados ao direito ao aborto.
Em entrevista ao "Correio da Manhã", ela explica, ainda, como a Cepia tem trabalhado para trazer mais consciência em torno do tema, por meio de eventos impactantes que colocam a sociedade diante de uma realidade que precisa ser enfrentada.
Correio da Manhã - Em maio deste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) cobrou do governo brasileiro medidas para garantir a saúde reprodutiva das mulheres no país. Por que este tema continua a ser um desafio?
Jacqueline Pitanguy - A Constituição Federal é a lei suprema do Brasil. O artigo 5º garante que homens e mulheres são iguais perante a lei, sem distinção, assim como assegura o direito à liberdade. Porém, hoje, o Estado brasileiro interfere diretamente nessa garantia constitucional. A mulher não é livre para decidir sobre o próprio corpo. E isso decorre da persistência de uma cultura patriarcal que, há séculos, restringe o poder decisório das mulheres em diferentes dimensões e, sobretudo, em suas escolhas relativas a sexualidade e reprodução, que conformam um território de disputa religiosa. A crença é uma convicção pessoal e, da mesma forma, é um direito previsto na Constituição, mas estender valores religiosos a toda a população é tolher o cumprimento da regra legal. Precisamos garantir que as brasileiras exerçam sua liberdade em plenitude, incluindo as suas escolhas reprodutivas. Estamos falando do direito à saúde, assegurado também por Convenções e Tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Correio da Manhã - Nota-se uma ascensão do conservadorismo no mundo. Em decisão recente, a Suprema Corte dos Estados Unidos reverteu uma decisão histórica de 1973 sobre o aborto, que permitia o acesso a esse procedimento. Como a Cepia enxerga essa questão?
Jacqueline Pitanguy - Esta decisão reflete a preponderância de juízes extremamente conservadores na Corte Suprema. Outro ponto que destaco é a hegemonia de opiniões/decisões masculinas em temas relativos às mulheres. Na decisão citada na pergunta, dos seis votos que levaram os Estados Unidos a retrocederem 50 anos em saúde reprodutiva, cinco foram proferidos por homens. As mulheres ficam à mercê de decisões que impactam seu próprio corpo. Não tenho dúvidas de que o aborto será pauta do debate entre os candidatos Kamala Harris e Donald Trump durante as eleições norte-americanas. Por outro lado, vamos lembrar que na França a decisão sobre o aborto foi alçada a um direito constitucional, o que constitui uma grande oportunidade para que a discussão sobre o tema se faça no marco dos direitos humanos, do pluralismo, do respeito à diversidade religiosa.
Correio da Manhã - No Brasil, a agenda conservadora parece ganhar corpo também. O tema é alvo de debate no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso Nacional. As organizações de defesa dos direitos das mulheres temem novos retrocessos?
Jacqueline Pitanguy - Qualquer novo retrocesso seria prejudicial a toda sociedade. Porque o abortamento não é apenas uma questão das mulheres e das pessoas que gestam. É uma questão central de democracia, de justiça e de saúde pública. A taxa de gestação na adolescência, na faixa etária de 10 a 20 anos, é muito elevada no Brasil. São mais de 400 mil casos por ano, com impactos de longo prazo na vida destas mulheres e efeitos socioeconômicos no país. Todas as autoridades deveriam trabalhar primeiramente para a proteção social de nossas crianças, que são vítimas dos mais diversos tipos de violência. A sexual é a mais grave delas. É urgente que as escolas ofereçam educação sexual em seus currículos e que se multipliquem os canais de denúncia e acolhimento destas vítimas. O "PL do Estupro" foi o mais recente absurdo que vimos sobre o tema. Seu propósito desumano despertou a sociedade brasileira para o problema, que se manifestou de forma contundente contra o projeto. Somente o processo educativo será capaz de eliminar distorções como essas.
Correio da Manhã - Faltam leis de proteção à mulher no Brasil?
Jacqueline Pitanguy - É preciso aproximar as leis da realidade. A Lei Maria da Penha (de 2006) seria impensável na década de 80. Quase vinte anos depois, vemos que existe mais consciência coletiva quanto à violência contra a mulher. No Brasil, a Cepia tem realizado uma série de iniciativas para sensibilizar e mobilizar brasileiras e brasileiros sobre a necessidade de atualizar as leis que regem o aborto. Já realizamos um grande evento em Brasília e a próxima intervenção pública será no Rio de Janeiro, na região portuária.
Correio da Manhã - Por que o aborto deve ser encarado como uma política de saúde pública, e não como um tabu?
Jacqueline Pitanguy - O tema tem sido tão proibitivo no Brasil, que é difícil aprofundar o debate. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, a cada ano, entre 4,7% e 13,2% das mortes maternas ocorrem devido ao aborto inseguro. Segundo a instituição, o reforço do acesso a cuidados abrangentes nos abortos é fundamental para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) relacionados com a boa saúde e o bem-estar (ODS3). Hoje, o aborto inseguro provoca uma sobrecarga desnecessária ao sistema de saúde. Sem falar no aspecto social, que afeta mais mulheres pretas, com baixa renda, em situação de vulnerabilidade. É preciso tornar a discussão pública, transparente e livre de preconceitos para que todas as mulheres possam estar amparadas na busca por seus direitos.
Correio da Manhã - Sobre o evento do dia 26 de agosto, poderia contar um pouco sobre ele?
Jacqueline Pitanguy - Nosso grande objetivo é fazer com que a sociedade reflita sobre a necessidade de avançar em pautas que garantam o direito das mulheres sobre seu próprio corpo. Em pleno século 21, com os inúmeros avanços tecnológicos alcançados, não podemos deixar que algo tão primordial para o exercício pleno da liberdade da mulher ainda seja retratado de forma preconceituosa e ilegal. No evento, que também marca o Dia Internacional da Igualdade Feminina, vamos mostrar que as leis precisam avançar com o mundo. A escolha do local também é simbólica. Em redutos como da chamada Pequena África, como o Largo de São Francisco da Prainha e a Pedra do Sal, os sambistas antigamente eram perseguidos e presos por vadiagem. Hoje, as mulheres são consideradas criminosas se optam pelo aborto, que deveria ser uma decisão individual amparada pela lei.
Serviço
O que: Projeção da CEPIA em prédio e instalação urbana vai destacar questões sobre o aborto no Brasil.
Local: Em frente ao Largo de São Francisco da Prainha, no Centro do Rio de Janeiro.
Data/Hora: 26/08, a partir das 19h
Mais informações: www.crimeenaofalar.com.br