Tom sobre tom: luta racial no balé clássico
Branco e europeu, mundo da dança é desafio para quem não tem esse padrão
Faltavam poucos minutos para a bailarina entrar no palco e a ansiedade tomava conta de si. Não era algo novo. Porém, o mesmo sentimento sempre tomava conta quando estava prestes a dançar para o público, o mesmo nervosismo na boca do estômago combinado com a palpitação. Ela observa o ambiente ao seu redor com olhos que exalam nervosismo. É quando ela chega a uma conclusão triste. Ela era a única negra ali. Isto a fez pensar: "Como posso ser a única negra no meio de oitenta pessoas?"
O balé clássico, originário da Europa, projeta um imaginário de delicadeza e beleza, atributos comumente associados à pele clara e ao corpo esguio sem muitas curvas. Dentro do ambiente do balé clássico, não é difícil encontrar relatos sobre problemas como distorção de imagem e transtornos alimentares, devido ao padrão corporal cobrado de forma tóxica. Mas também, é possível encontrar outra dificuldade ainda não solucionada: a luta racial e a representatividade negra dentro do balé.
Poucas vezes escalada
Mercedes Batista foi a primeira bailarina negra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e é considerada a maior precursora da dança afro-brasileira. Bailarina de formação erudita, apesar de fazer aulas com a companhia, poucas vezes foi escalada para uma apresentação oficial da companhia. Em entrevistas e bibliografias sobre a artista, ela declara ter sofrido racismo durante sua trajetória e que isso mudou sua relação com a dança. Ela se tornou célebre por causa de seu trabalho na dança afro-brasileira, além de romper paradigmas para a época, na qual não se aceitavam pessoas pretas em companhias de balé clássico.
Nascida em 1921, em Campo dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, Mercedes Batista sempre sonhou em ser famosa e ser artista. Em 1948, um concurso interno para ingresso no corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro foi a sua maior oportunidade. Aprovada, junto com o bailarino Raul Soares, ambos se tornam os primeiros negros a ingressarem na casa. Contudo, a bailarina nunca fora escalada para dançar balés clássicos de repertório, apenas dançava moderno, e remontagens neoclássicas com temas brasileiros e sobretudo participava das ditas óperas.
Ao longo de sua carreira, Mercedes Baptista oportunizou diversos negros e negras de baixa renda e com pouca escolaridade, provocando grandes transformações em suas vidas. Como exemplo, pode-se destacar a cantora Elza Soares que recebeu uma de suas primeiras oportunidades ao cantar junto com o Ballet Folclórico Mercedes Baptista, companhia própria criada pela artista com foco no conhecido balé afro-brasileiro, dança inspirada nos terreiros de candomblé, com uma codificação e vocabulário próprio criado por Mercedes.
Sapatilhas
Apenas após 200 anos da criação das famosas sapatilhas de ponta no balé clássico, a marca Freed of London lançou, no ano de 2019, uma coleção especial com sapatilhas feitas com variados tons de marrom para pessoas negras. Usualmente, as sapatilhas utilizadas são de tonalidades claras, como rosa e branco, não tendo variações de tons de pele como deveriam. A coleção de sapatilhas inovadoras abriu o debate de como bailarinas negras as utilizavam antes do lançamento de outros tons de pele e como, por séculos, uma tradição racista foi mantida sem alterações ou mudanças drásticas.
Os bailarinos negros pintavam as sapatilhas com base de maquiagem para deixar a sapatilha na tonalidade certa de sua pele. Esta é uma técnica trabalhosa e que causa mais despesas, pois a maquiagem na sapatilha diminui a sua durabilidade, que é cara por si só. A faixa de preço das sapatilhas de ponta gira em torno de R$ 200, em modelos mais simples e marcas mais acessíveis como a Capezio, até mais de R$1 mil, em marcas mais renomadas como a Gaynor Minden.
A bailarina brasileira negra Ingrid Silva, hoje dançando nos Estados Unidos, conta um pouco da revolta com o descaso das marcas de sapatilha de ponta para com as pessoas negras. "Acho que as marcas estão super atrasadas e que já deveriam ter feito as sapatilhas. A desculpa é que não tem mercado. Eu discordo. Por exemplo, o Dance Theatre of Harlem já está ativo há 50 anos e desde então, seus bailarinos sempre coloriram as sapatilhas até recentemente", analisou.
Ingrid Silva, atualmente, é referência em relação à luta racial dentro do mundo do balé clássico. Autora do livro "A sapatilha que mudou meu mundo", que foi lançado em 2021, que conta a biografia da bailarina e toda a sua trajetória até chegar aos palcos internacionais. Nascida no subúrbio carioca, Ingrid Silva está hoje em um dos maiores postos do balé mundial. Aos 8 anos, ainda menina, conseguiu uma vaga em um projeto social que leva aulas de balé para as comunidades carentes do Rio de Janeiro e nunca mais parou de dançar. "Os lugares que estamos ocupando agora, em 2020, as bailarinas brancas já ocupam há séculos", lamenta a bailarina.
Ao entrar para a Dance Theatre of Harlem, em Nova York, Ingrid deparou com um grande problema: a cor da sapatilha. Como o balé nasceu na Europa e foi idealizado predominantemente por pessoas brancas, as sapatilhas rosas sempre foram adotadas como um padrão por conta da tonalidade de pele das pessoas daquela região. Tanto a sapatilha quanto a meia calça utilizadas no balé têm como função servir como extensão da perna da bailarina para que pareça que ela está flutuando pelos palcos. Uma sapatilha cor de rosa, infelizmente, não abarca corpos miscigenados e de outras etnias.
Peça de museu
Ingrid passou cerca de onze anos pintando os próprios calçados até conquistar sapatilhas fabricadas com a cor da sua pele. Um ano após a transformação que se causou como forma de resistência dentro de um contexto inflexível, um par das sapatilhas que Ingrid pintava virou peça do Museu Nacional de Arte Africana Smithsonian, nos Estados Unidos.
Ao longo da trajetória, Ingrid venceu obstáculos, sofreu preconceito e narra neste livro toda a sua caminhada até aqui. "A dança conseguiu motivar meu irmão e a mim e nos levar a outras áreas que nos fizeram crescer não só como profissionais, mas como seres humanos. Este livro não fala apenas sobre balé. Ele relata a minha vida, o que me levou a ser essa mulher que, hoje, não tem dúvidas sobre a sua importância, sobre o seu lugar no mundo", conta a bailarina.
O Dance Theatre of Harlem, localizado nos Estados Unidos, é uma companhia de dança em que a maioria de seu elenco conta com bailarinos negros atuando. A qualidade artística da companhia é tão boa quanto a de grandes escolas que não possuem nenhuma pessoa negra no seu grupo principal. "Um bailarino negro muitas das vezes não tem oportunidade não por capacitação, pois eles são talentosos, mas sim porque a companhia que ele está ou quer entrar não tem tanta diversidade no grupo de bailarinos", destaca Ingrid.
As grandes companhias de ballet, como a Escola Bolshoi e a Vaganova Academy (Rússia) e a The Royal Academy (Reino Unido), não possuem nenhuma bailarina principal negra. Nos balés de repertório que já foram gravados em DVDs, nenhuma das bailarinas em destaque foge do padrão corporal europeu pré-estabelecido. "As companhias de ballet profissionais hoje ainda são de maioria branca. Uma criança negra bailarina não se vê lá na frente como uma imagem a se inspirar e sonhar em ser", afirma a bailarina.