Encravada após uma curva na BR-367, na cidade de Diamantina (MG), a estátua negra de um escravo marca um secular caminho de pedra. Um caminho que certamente merecia melhor divulgação e estrutura. Não há sequer uma área de estacionamento próxima ao lugar. É preciso parar o carro no acostamento e andar alguns metros. Ali, porém, está preservado um dos mais impressionantes registros históricos de um tempo em que as chamadas Minas Geraes eram o ponto mais importante do Brasil, o centro da economia, com seu ouro e suas pedras preciosas.
As seculares pedras do caminho que ligava o então Arraial do Tijuco, atual Diamantina, à Mendanha (MG) foram colocadas pelo trabalho escravo no início do século 19, a mando do Desembargador Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt, e visavam o transporte dos tropeiros e do tráfico de diamantes. São um dos destaques do que é hoje a maior rota turística e histórica do país, a Estrada Real.
Mantida pelo Instituto Estrada Real, a rota, no seu total, tem mais de 1,6 mil quilômetros. Agrega os caminhos que eram utilizados para levar o ouro e as pedras preciosas de Minas até o litoral, de onde ele partia de navios para Portugal. Os caminhos começaram a ser traçados em meados do século 18, quando a Coroa portuguesa oficializou as estradas que ligavam as lavras de minérios aos portos. Em 1999, o Instituto Estrada Real foi criado e começou a recuperar esses caminhos. Ao longo das estradas por onde passa, marcos apontam o visitante que ele está passando pelos mesmos lugares onde, no passado, passaram os diamantes contratados por João Fernandes, que fizeram a riqueza da sua amante, Chica Silva, tornando essa mulher negra uma das mais poderosas do seu tempo. Foi também por ali que o alferes Joaquim da Silva Xavier passou muitas vezes. Foi por ali que ele, o Tiradentes, tentou, com os demais inconfidentes, tornar o Brasil independente. É ainda ali que estão as obras de mestres do barroco brasileiro, como Antônio Francisco de Lisboa, o Aleijadinho, ou Manuel da Costa Ataíde, o mestre Ataíde.
200 cidades
Ao todo, a Estrada Real passa por cerca de 200 cidades, de três estados brasileiros: Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Na verdade, são quatro caminhos distintos, todos eles tendo como ponto central a cidade de Ouro Preto. O Caminho Velho, como o nome diz, o mais antigo, liga Ouro Preto a Paraty, no Rio de Janeiro. No total, 710 km. O Caminho Novo sai também de Ouro Preto, mas com destino ao Rio de Janeiro. Tem 515 km. O Caminho dos Diamantes sai de Diamantina até Ouro Preto, de onde se poderia seguir pelo Caminho Velho ou pelo Novo. São 395 km.
Há ainda uma alça alternativa de 300 anos: o Caminho da Sabarabuçu. Diz a história que viajantes avistaram algo brilhando no alto da Serra da Piedade. Acreditaram que era ouro, e, assim, abriram o caminho de 160 km que vai por ali, passando, por exemplo, por cidades como Sabará.
Boa parte da história brasileira está inserida nas estradas desses três caminhos. Não apenas o que está diretamente ligado ao Ciclo do Ouro. Faz parte também, por exemplo, da Estrada Real, a cidade de Aparecida (SP), onde está a imagem da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.
Passaporte
É um trajeto tão importante que é o único dentro do território brasileiro que requer passaporte. Claro, não se trata de um documento obrigatório. Mas algo que, sem dúvida, enriquece muito o trajeto. Pelo custo de um quilo de alimento não perecível, é possível se tirar o passaporte da Estrada Real. Basta se cadastrar no site do Instituto Estrada Real (institutoestradareal.com.br) e fazer o cadastro. Ao longo da estrada, há cidades onde, então, o passaporte pode ser retirado, pelo preço do quilo de alimento.
E, então, a cada ponto da Estrada Real por onde se passa é possível carimbar a passagem. Criando, assim, uma bela lembrança da aventura turística. Os viajantes que percorrerem todos os trechos dos quatro caminhos da Estrada Real ganham um Certificado Especial emitido pelo instituto.
Caminhos
Literalmente percorrer todos os caminhos não é tarefa das mais fáceis. Há quatro possibilidades sugeridas: a pé, de bicicleta, de moto ou usando veículos 4X4 (é possível ir em outros automóveis, mas não muito recomendável, porque a maioria dos trechos é de terra).
Mas é possível fazer somente trechos, usando às vezes os caminhos originais ou indo pelos pontos pelas estradas mais modernas de asfalto. Usando um Renault Sandero Stepway, que não é um veículo 4X4, foi a forma que optamos. Nosso roteiro ocupou somente parte da Estrada Real, em um circuito que se iniciou no Caminho dos Diamantes, em Diamantina, passou pelo Sabarabuçu e por parte do Caminho Velho, até São Lourenço (MG). Passando, no total, por 12 cidades mineiras: Diamantina, Milho Verde, Serro, Santa Bárbara, Catas Altas, Barão de Cocais, Tiradentes, Sabará, São Lourenço, Caxambu, Ouro Preto e Mariana.
Diamantina
Um dos grandes baratos do trajeto da Estrada Real está na possibilidade de conhecer outros pontos para além do circuito mais tradicional das cidades históricas mineiras – Ouro Preto, Tiradentes, São João Del Rey, etc. A estrada permite avançar por incríveis paisagens das serras mineiras – especialmente Espinhaço e Mantiqueira. E topar com outras cidades que também impressionam por sua beleza e pela riqueza das suas igrejas e casarões coloniais.
E a principal dessas cidades fora do circuito tradicional é justamente Diamantina. Encravada no norte de Minas, já no Vale do Jequitinhonha, é dona de história tão rica e admirável como Ouro Preto.
Fundada no início do século 18, Diamantina acrescentou novo capítulo á história da mineração. Ali, não era mais o ouro, mas o diamante que impulsionou seu desenvolvimento, tornando-a hoje também Patrimônio da Humanidade.
E é o berço de dois importantes personagens da história brasileira, que hoje marcam a cidade: Chica da Silva e Juscelino Kubitschek. E é um dos grandes exemplos das histórias de sobrevivência e de inteligência das classes mais baixas para ascender em um país desigual, preconceituoso e violento. A escrava, depois alforriada, conquistou João Fernandes de Oliveira, o “contratador de diamantes”, ou seja, o funcionário da Corte justamente encarregado de comprar e enviar para Portugal as pedras preciosas. Por mais de 15 anos, eles viveram unidos e tiveram nada menos que 13 filhos. Embora não tenha sido oficialmente casada com João Fernandes, ela era para todos a sua mulher, o que lhe permitiu ter poder e dinheiro. Entre as suas extravagâncias, estão a construção de um palácio com um lago artificial que incluía dentro um barco a vela para passear.
A casa onde viveu Chica da Silva é hoje um dos museus da cidade, que conta a inacreditável história da escrava que se tornou tema de um filme de Cacá Diegues (com Zezé Motta) e de uma novela de Walcy Carrasco (com Taís Araújo).
O outro personagem importante de Diamantina é Juscelino Kubitschek. O presidente do Brasil entre 1955 e 1960 é por muitos considerado o político mais importante da história brasileira. Hoje, ele olha Diamantina como estátua de um ponto alto da cidade.
A casa onde JK viveu a maior parte da sua infância e o início da sua vida adulta é também um museu. Sede do Instituto JK, que Serafim Jardim, aos 90 anos, dirige com dedicação e esmero.; Quando nasceu, Juscelino vivia em um casarão mais importante da rua Direita de Diamantina. Mas seu pai, o caixeiro-viajante e delegado de polícia João Cesar de Oliveira morreu de tuberculose em 1905, quando JK tinha apenas três anos. Sua mãe, a professora primária Júlia, viu-se obrigada a mudar para uma casa mais modesta, ainda que ampla. É essa a casa onde funciona o Instituto JK.
Quando o visitamos, no início de setembro, Serafim Jardim estava empenhado na organização das solenidades de comemoração do nascimento de JK, que completaria 123 anos no dia 12 de setembro. Juscelino morreu no dia 22 de agosto de 1973, em um nebuloso acidente de carro na Via Dutra, em trecho próximo á cidade de Resende (RJ). Até hoje, há quem desconfie ter se tratado mesmo de um acidente. E o caso ainda é investigado. Serafim é um dos que duvidam da versão do acidente.
Mas Diamantina também encanta por sua cultura e pela natureza, encravada aos pés da Serra do Espinhaço. A região possui muitas cachoeiras e é ponto importante de ecoturismo. E também de cultura. Em dias específicos durante os meses, acontece na cidade a Vesperata, quando músicos cantam e tocam das sacadas dos casarões coloniais.
Serro
Outra cidade fora do circuito histórico tradicional que encanta é Serro. Próxima de Diamantina, Serro hoje se destaca pela produção de alguns dos melhores e mais premiados queijos brasileiros. O Café da Praça do Serro, na Praça João Pinheiro, oferece uma das melhores experiências gastronômicas para degustar o sabor dos queijos da região. Trata-se da Cumbuca de Queijo. Envolto em uma massa fina há um blend com três queijos de maturação diferente. Por cima, caramelo salgado, castanhas de caju e um toque de café. Próximo ao café, há um empório onde é possível comprar os queijos do Serro.
Tudo isso enquanto se curtem as paisagens de uma cidade belíssima. Que se destaca principalmente pela Igreja de Santa Rita, no alto de uma escadaria com 57 largos degraus de pedra. Em volta da praça, outros pontos importantes, como a também imponente Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Outras construções históricas, como a Casa de Caridade Santa Teresa, antiga Casa de Fundição do Ouro, de 1720, merecem destaque.
A ida de Diamantina ao Serro pode ser um capítulo á parte. Embora seja possível ir de uma cidade a outra por asfalto, o caminho mais indicado é pela terra de fato da Estrada Real, que contorna, subindo e descendo a Serra do Espinhaço por lindas paisagens de formações rochosas, pela nascente do rio Jequinhonha e por charmosos vilarejos como Milho Verde. É o primeiro ponto onde se irá deparar com os marcos da Estrada Real, que se tornarão comuns pelo caminho.
Caraça
Considerado uma das “Sete Maravilhas da Estrada Real” está o Santuário do Caraça. Foi ali, dentro de uma das únicas igrejas góticas construídas no Brasil, que Milton Nascimento gravou, em 1982, a Missa dos Quilombos, criação sua em parceira com Dom Pedro Casaldáliga e o poeta Pedro Tierra.
O Caraça é mais uma das curiosas histórias encontradas na Estrada Real. O santuário começou a ser construído no século 18 por um certo Irmão Lourenço de Nossa Senhora. Esse Irmão Lourenço ingressou na Ordem Terceira de São Francisco em 1763, e as informações sobre sua origem são desencontradas. Acredita-se que ele pertencia á família Távora, que se envolveu numa querela em Portugal contra o rei Dom José I, que teria sido vítima de um atentado organizado pela família. O rei manda matar todos os irmãos da família, mas um acaba desaparecendo. Então, aparece no Brasil o Irmão Lourenço e se instala na Serra do Caraça.
Em 1806, Irmão Lourenço doa sua propriedade para a coroa portuguesa. E ali se estabelece uma missão para encerras letras, artes e línguas para religiosos. A missão irá se transformar um dos mais importantes colégios brasileiros do século 19 e início do século 20. Por ali, passaram presidentes como Afonso Pena.
Hoje, o conjunto abriga a imponente igreja neogótica Nossa Senhora Mãe dos Homens, onde Milton Nascimento gravou a Missa dos Quilombos. E as ruínas do antigo colégio, que pegou fogo em 1968. Nas ruínas, um museu conta a história do Caraça.
Há ainda outra atração importante no Caraça. Vivem na região lobos guarás. E os responsáveis pelo santuário criaram uma aproximação com eles. No pátio da igreja, é deixada comida para os lobos, e ás noites eles costumam aparecer ali para se alimentar.
O Caraça fica em uma outra região de cidades belíssimas, que merecem visita. Casos de Santa Bárbara, Barão de Cocais e Catas Altas, linda aos pés da Serra do Espinhaço. Infelizmente, algumas dessas cidades carecem de melhor estrutura turística. É difícil achar restaurantes abertos na hora do almoço, por exemplo.
Sabará
Outra cidade fora do circuito tradicional que merece visita é Sabará. Ali está outra das “Sete Maravihas da Estrada Real”, o Teatro Municipal de Sabará. A sensação é de se entrar no palco onde William Shakespeare encenava suas peças na Inglaterra. Segue o modelo dos antigos teatros elisabetanos e italianos, com 41 camarotes, uma galeria popular e a plateia, com capacidade para 400 espectadores. Trata-se do segundo teatro mais antigo do Brasi ainda em atividade. Foi inaugurado em 1819, substituindo outra edificação, mais primitiva, de 1770.
Já próxima da tradicional Ouro Preto, Sabará conta também com belas igrejas barrocas e com as obras de seus principais mestres. Trabalhos de Aleijadinho estão na Igreja Nossa Senhora do Carmo, por exemplo.
Circuito das Águas
Como ninguém é de ferro, o roteiro incluiu trechos da Estrada Real indicados para recarregar as baterias: as joias do chamado Circuito das Águas, São Lourenço e Caxambu. Há mais de um século, as duas cidades são procuradas pelas suas águas medicinais. Diversas fontes de água mineral com diversos componentes químicos que ajudam a tratar males que vão de problemas intestinais, renais a cansaço, inflamação e dores musculares.
Um dos cartões postais é a Fonte Dom Pedro, em Caxambu. Adornada numa construção com colunas greco-romanas, a fonte de água mineral naturalmente gasosa é ainda decorada com uma réplica da coroa de Dom Pedro II.
Tanto São Lourenço quanto Caxambu possuem belos parques onde ficam as diversas fontes com as águas e as indicações dos males que tratam. Em ambos os parques, há ainda balneários, com piscinas, duchas, salas de massagem e banheiras para banhos terápicos.
Tradicional
E há, é claro o circuito mais tradicional, que é também obrigatório. Ouro Preto, Tiradentes e São João Del Rey são partes fundamentais da história brasileira. Mas muito já se falou sobre elas.
Assim, recomenda-se também um tempo para fugir do tradicional. Seja indo ao vilarejo de Bichinho, próximo a Tiradentes, ou à charmosa Lavras Novas, em Ouro Preto. Aí, outro ponto maravilhoso para quem curte estradas. O caminho até lá é um deslumbre impressionante de paisagens pela Serra do Espinhaço.
A Estrada Real é história na veia. E esse circuito é somente uma parte do que ela oferece.