Por: Thamiris de Azevedo

Uma Hypnacoteca no meio do Cerrado brasiliense

"O caos é comum a todos, mas cada um o organiza à sua maneira", diz Nelson Maravalhas | Foto: Thamiris de Azevedo/Correio da Manhã

O Correio da Manhã acompanhou a reabertura da segunda exposição da história da Hypnacoteca Maravalhas, também conhecida como Museu do Urubu, apelido dado por sua proximidade com o Córrego do Urubu, uma pequena cachoeira localizada na zona rural do Lago Norte, em Brasília. Nelson Maravalhas Jr., artista e idealizador independente do espaço, recebeu a reportagem para apresentar a mostra, inaugurada em 13 de setembro, que reúne um acervo com 300 obras autorais.

A Hypnacoteca foi inaugurada em 2024, com a exposição de estreia intitulada “Pinturas Hipnagógicas”. Segundo Nelson Maravalhas, a proposta é realizar uma nova mostra a cada ano. Desta vez, o Correio visitou a exposição atual, chamada “EXPERIMENTAL”, e aproveitou a ocasião para espiar outras obras que permanecem guardadas nos galpões do museu.

O nome é um neologismo misturando o termo “Hipnagógico” (estado entre sono e vigília) e “pinacoteca” (local de guarda de pinturas). É a partir deste conceito que o artista plástico retira a maior parte das ideias para suas produções que compõe um museu não tradicional.

A exposição está distribuída em quatro galerias e em espaços que o artista denomina “paredes adjacentes”, paredes que não seguem uma ordem linear, mas apresentam uma lógica interna que guia a experiência do visitante.

“Essas paredes são fronteiras difusas entre uma exposição e outra”, relata Nelson.

Arte, experimento, caos e acaso

A exposição “EXPERIMENTAL” é um convite ao caos do acaso, quando Nelson transforma ideias aleatórias em obras concretas. “O caos é comum a todos, mas cada um o organiza à sua maneira”, diz.

A maioria das obras, segundo o artista, foi criada com o “auxílio luxuoso do acaso”, em um processo lúdico guiado pela própria natureza dos materiais. As criações surgem a partir de elementos encontrados, como uma imagem, um objeto, uma mancha ou um gesto espontâneo, que funcionam como estímulos criativos iniciais. A partir dessa base, o artista realiza uma série de operações compositivas e intervenções físicas, promovendo transformações visuais e conceituais. Em alguns casos, parte de imagens impressas ou objetos encontrados; em outros, reinterpreta obras de outros artistas por meio de intervenções pessoais e únicas.

“Quis fazer um artefato dotado de algum poder artístico estético que funcione. Acredito haver uma ordem nas diferentes fisionomias dos materiais. Acredito em uma ordem dos gestos, não mítica, alguns mais lúcidos que os materiais. A exposição conta e mostra os resultados”, diz.

Galeria 1

Na Galeria 1, apresenta-se uma série de obras exclusivas em que o artista se apropria de criações de nomes significativos da História da Arte. Por meio de reinterpretações e reelaborações, ele dialoga com pinturas históricas tanto da arte quanto da ciência. “E é isso mesmo, eu reinvento”, afirma Nelson.

“Por exemplo, uma ‘Deposição da Cruz’, por Caravaggio, onde mostro mais claramente o que o pintor italiano gostaria de ter mostrado sobre as aparências. É uma educação do olhar do espectador, para que busque essas intenções. ‘Um afresco’ de Botticelli da Capela Sistina, realço a saturação das cores, realizo cortes e incluo um elemento contemporâneo. Também há a ‘Torre de Babel’, de Brueghel, com elementos locais e interpretações minhas sobre seu conteúdo” continua explicando os quadros.

A única exposição permanente

A Galeria 2 e a única exposição que Nelson revela ser permanente. “Essa fica pelo menos até eu morrer. É a parte mais ‘estranha’ do museu”, destaca.

Na mostra “A Mecânica dos Animais Dramáticos – a divina commedia dell’arte humana”, apresenta-se uma seleção de esculturas que compõem uma hipotética peça de teatro, descrita pelo artista como “ao contrário”. São personagens estáticos, silenciosos e desprovidos de uma narrativa linear, subvertendo a lógica tradicional da encenação.

"A instalação é povoada por figuras alegóricas formadas por representações de homens, objetos e animais. Me inspirei no teatro Mambembe, que era uma forma popular e itinerante de teatro de rua”, explica.

Para o artista, essa galeria configura-se como um grande tableau vivant — expressão francesa que designa encenações estáticas inspiradas em composições pictóricas —, em que se representa, poeticamente, o 'inferno' simbólico da sociedade contemporânea.

“Esses escultóricos formam enigmas, que cabe ao espectador decifrar, ou até inventar”, explicou.

Essa mostra também foi exibida em 2015 no prestigiado Museu Nacional da República, situado no icônico monumento projetado por Oscar Niemeyer, no centro de Brasília.

'Feticharias'

Já a Galeria 3 contém duas prateleiras de objetos feitos a mão. Maravalhas chama de “Feticharias”. “É uma mistura de fetiche com feitiçaria. Aqui, produzi obras com os objetos mais humildes da pirâmide social, como, por exemplo, pano de chão”, ele relata.

Pelas paredes, distribui-se uma coleção de pinturas realizadas em técnicas diversas, produzidas desde a década de 1980 até os dias atuais. Grande parte das obras desta galeria foi finalizada durante a pandemia, a partir de esboços e composições iniciadas anteriormente, o que revela camadas temporais e processos acumulativos presentes no fazer artístico do autor.

Ele revela que a Galeria 3, de uma certa forma, é resultado de seus estudos sobre Outsider Art Brut, artes produzidas por pessoas diagnosticadas como psicóticas, tema que foi sua tese de doutorado na Inglaterra, e do seu pós-doutorado finalizado na Alemanha.

“São conjunções de materiais diversos que se unem ao sabor do ‘grande acaso’, que é o organizador universal da matéria”, conta Maravalhas.

Galeria 4

Essa, de acordo com o artista, é a coleção mais ordenada desta exposição, no sentido de tamanho, formato e método de trabalho. Note-se os grupamentos arranjados durante a expografia tem elementos da natureza como água, terra, animais, e de espacialidade.

“Os arranjos flagraram minhas obsessões nesses objetos”, diz ao Correio da Manhã.

Interação do público

Maravalhas destaca que, por enquanto, não tem interesse financeiro nas visitações. Sua intenção é simplesmente apresentar sua arte ao mundo. A única contrapartida que espera, segundo ele, é o retorno do público. Na entrada e na saída do museu, há um caderno no qual os visitantes são convidados a registrar suas impressões. A proposta é que, por meio dessas anotações, os observadores atribuam significados abertos às obras, a partir de suas próprias interpretações.

“É um museu que solicita a participação ativa dos visitantes para que deem sua opinião e falem algo. Em nenhum museu do mundo o público é convidado a se manifestar. Ele entra calado e sai mudo, como se dizem. Mas aqui não. Eu conclamo as pessoas para que falem. Então, é um museu mais democrático”, declara.

Pintor literário

Nelson Maravalhas nasceu no Rio de Janeiro e chegou em Brasília ainda criança, em 1967. Foi professor da Universidade de Brasília (UnB) por mais de 30 anos, onde lecionou no Departamento de Artes faculdade. À reportagem, ele declara que é um artista que ainda não sabe se faz uma pintura literária ou uma literatura pintada.

“Sou um escritor que escreve sem lápis, que narra com tintas e figuras. Mas quero deixar uma coisa clara: ao contrário do que alguns dizem, eu não sou um surrealista. Tenho vários motivos para isso. O primeiro, é que o lúdico do surrealismo acabou se tornando um sinônimo pejorativo da quase inconsciência, e ainda não acredito em criações totalmente inconscientes. É um termo complicado. Ainda, não acho que tudo precisa ter uma interpretação exata. Por fim, não sou surrealista pois eu nasci muito depois e, na minha opinião, não faz nem sentido eu me encaixar em um grupo historicamente distante”, ressalta.

Ele também conta que começou a se descobrir como artista aos 16 anos, quando iniciou a prática do desenho em folhas de papel. Ao longo da vida, reuniu um vasto conjunto de obras plásticas, incluindo pinturas e esculturas produzidas com diversos materiais. Durante oito anos, idealizou o espaço e investiu toda a sua aposentadoria para criar um lugar próprio, que fosse sua casa e abrigo para suas milhares de composições.

Arquitetura

Responsável pelo projeto arquitetônico que chama a atenção, o filho de Nelson, Raul Maravalhas, compartilha um pouco dos detalhes da construção.

“Fiz o projeto em parceria com Danilo Fleury. Escolhemos os ‘tijolinhos’ inicialmente por uma questão financeira, já que é um material relativamente barato. Na verdade, trata-se de um revestimento cerâmico de fácil acesso na região. Também queríamos uma textura homogênea, com volumes bem definidos, mas que ao mesmo tempo transmitisse movimento por meio de uma heterogeneidade implícita. A variação de tonalidades proporciona essa sensação de forma natural. A ideia foi brincar com o assentamento das peças em volumes cúbicos, combinando-os com os cobogós”, explica o arquiteto.

Fluery complementa à reportagem que a intenção do projeto também foi dialogar com o externo, cercado da natureza.

"Nós também nos inpiramos nas próprias obras de Maravalha, que é mais inrospectiva,entre o momento do sonho e a vigília. Então, o conceito do edifício tem esse grande volume hermético que é fechado no no muro exterior, e quando o o visitante entra, ele entra em contato  com esse aspecto íntimo da obra do artista. A escolha dos materiais foram feitas para trazer essa harmonia, e também buscamos um diálogo do edifício com o externo composto pela natureza do Cerrado", afirma.

MOVI

Neste sábado (27), o Museu do Urubu irá receber, às 19h, uma edição especial da MOVI – Mostra de Vídeo Independente Brasiliense. A sessão reúne produções audiovisuais realizadas no Distrito Federal desde o início dos anos 1980, oferecendo ao público um panorama retrospectivo da criatividade e experimentação que marcaram a cena local nas últimas décadas.