No Dia do Cerrado, celebrado hoje (11), a contemplação das belezas do bioma se soma ao alerta urgente pela sua preservação. Mais do que reconhecer a riqueza dessa savana tropical, que é o segundo maior bioma do Brasil, é essencial refletir sobre as ameaças que colocam em risco rios, espécies e comunidades que dela dependem. Para aprofundar essa discussão, o Correio da Manhã ouviu o fundador do Instituto Cerrado, Yuri Salmona, que é geógrafo e doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UnB). Ele compartilhou dados e reflexões sobre os caminhos para a conservação. A narrativa ganha ainda mais força com as imagens cheias de sensibilidade e impactantes de André Dib, fotógrafo especializado em natureza. As imagens revelam a grandiosidade e a fragilidade desse patrimônio brasileiro.
Berço das águas
Da mesma forma que a Amazônia é conhecida como o “pulmão do mundo”, o Cerrado é considerado o “coração das águas”, que pulsa água para as veias do Brasil ao regar oito das doze principais bacias hidrográficas do país, a exemplo das bacias do São Francisco, Amazônica, Parnaíba, Paraguai (Pantanal) e Paraná. Yuri afirma que o bioma é peça central tanto no fornecimento de água para irrigação e abastecimento de centros urbanos, quanto na geração de energia.
Além de abrigar as nascentes dos afluentes que correm para os principais rios brasileiros, é no Cerrado que está localizado parte significativa do aquífero Guarani, o maior manancial de água doce subterrânea transfronteiriço do mundo. Ele se estende pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
“O cerrado, enquanto vegetação, se adaptou durante quase 60 milhões de anos para poder fazer essa interface entre a umidade da atmosfera e do subsolo. Então, quando cai a chuva, as copas das árvores e das gramíneas vão diminuindo a velocidade da chuva e fazendo com que ela se infiltre no solo. Depois, a água caminha pelas longas raízes das plantas e vai se acomodando ali nos espaços, entrando no subsolo e, aos poucos, vai também chegando em aquíferos. Essa água do subsolo é justamente a água que vai correr nos rios durante o período de seca”, explica Yuri.
Mosaico: savana e biodiversidade
O Cerrado é descrito pelo fundador do Instituto Cerrado como um mosaico vegetacional: é um bioma com predominância de características de savana, com árvores baixas e esparsas e muitas gramíneas, porém também é composto por formações florestais e campestres. Com isso, ele forma uma obra de arte nas paisagens ao longo de seus aproximados 2 milhões de km² — equivalente a cerca de 25% do território brasileiro, que tem pouco mais de 8,5 milhões de km². O bioma está presente em mais de 12 estados, como Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Tocantins, Piauí e Maranhão, além do Distrito Federal. No entanto, menos de 10% de sua área está legalmente protegida, em comparação com mais de 40% da Amazônia.
Por causa de sua extensão e pluralidade de características, a “savana tropical” também é considerada a mais rica em biodiversidade. Dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) apontam que a riqueza de espécies no Cerrado representa em média 33% da diversidade biológica do Brasil. Estima-se que ele abriga 320 mil espécies, sendo mais de 6 mil vegetais, podendo chegar a 10 mil.
A riqueza de espécies animais, como peixes, aves, mamíferos, répteis, anfíbios e invertebrados também é expressiva: a Embrapa avalia que o bioma comporta metade das espécies de aves, 45% dos peixes, 40% dos mamíferos e 38% dos répteis presentes no Brasil. Mesmo assim, essa biodiversidade geralmente é menosprezada, e animais como lobo-guará, onça-pintada, tatu-canastra, anta e pato-mergulhão correm sério risco de extinção. As espécies do Cerrado são vítimas de atropelamento em rodovias, de incêndios criminosos e da perda de seu habitat natural causado principalmente por desmatamentos para plantações, urbanização e poluição.
Incêndios
Em 2024, o Cerrado presenciou um dos piores anos de incêndios: até 31 de outubro, foram registrados mais de 76 mil focos de fogo, apresentando aumento maior que a metade das ocorrências em 2023, que foi de pouco mais de 45 mil. O fundador do Instituto Cerrado explica que as pessoas confundem a ideia de que, pelo fato de o bioma apresentar queimadas naturais e estar adaptado ao fenômeno, não há problema.
“Não é bem assim. Cerca de 99% dos incêndios que acontecem no Cerrado são criminosos. Em especial quando acontecem no período de seca, que concentra realmente esses ocorridos”, ele afirma.
O pesquisador acrescenta que os incêndios no Cerrado natural acontecem no período de chuvas, quando um raio cai numa árvore seca. E, por acontecer em um período de grande umidade, o fogo logo é apagado. “Então, a frequência, a intensidade e o período onde o fogo tem acontecido não é natural, e é um problema muito grave”, reiterou.
Ele conclui que os incêndios criminosos devem ser vistos com seriedade, e que deve haver fortalecimento de brigadas, com compra de equipamentos, monitoramento de qualidade e sinergia entre ações, que é um dos eixos adotados pelo Instituto Cerrado dentro do seu programa Suindara.
Desmatamento
Além de ser alvo frequente de incêndios criminosos, o Cerrado também é um dos biomas mais afetados pelo desmatamento. Dados de 2024 do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) revelam que o desmatamento no bioma gerou a emissão de mais de 135 milhões de toneladas de CO2 entre janeiro de 2023 a julho de 2024, volume que corresponde a 1,5 vezes o total produzido pela indústria brasileira anualmente.
Yuri afirma que metade da área já foi desmatada e que, pelo segundo ano consecutivo, foi o bioma mais desmatado do Brasil.
“A taxa de desmatamento é muito alta, com a porção sul e sudeste já muito desmatadas e fragmentadas. Os maiores blocos de Cerrado restantes estão na região chamada MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia)”, diz.
O fundador do Instituto Cerrado enfatiza a urgência de ações de proteção e restauração para evitar que o desmatamento continue. Para ele, desmatar o Cerrado é um “tiro no pé” para o desenvolvimento do Brasil.
“O Brasil depende do Cerrado do ponto de vista hidrológico, do ponto de vista de geração de energia, do ponto de vista de geração de emprego, geração de alimento, balança comercial, tudo isso depende do Cerrado de pé. Desmatar Cerrado dá um ‘tiro no pé’ para qualquer plano de desenvolvimento do país”, afirma, e acrescenta que é preciso haver várias ações de proteção e de restauração para garantir que essa área não continue sendo desmatada.
Paixão pelo Cerrado
Yuri Salmona, que é natural de Brasília, compartilha sua paixão pelo Cerrado desde a infância. Por volta dos cinco anos de idade, o avô o convidou para uma caminhada e foi apresentando as riquezas do bioma.
“Ele me levou para fazer uma caminhada beirando um rio, e aí ele foi me apresentando as coisas: raízes, folhas, todas com algum potencial de cura. Uma era para dor de cabeça, outra para dor de barriga, coisas desse tipo. E a partir dali eu vi que tinha uma coisa oculta que eu não conhecia, que eu olhava e via só plantas, rio, terra e formigas. E de repente eu vi que tinha muito mais para conhecer e aquilo me tocou, aquilo ali ficou comigo. Durante a minha juventude eu fui me vinculando cada vez mais ao Cerrado”, detalha.
Ele expressa que o Cerrado é “belíssimo, meio enigmático e encantador”. Para ele, a fundação do Instituto Cerrado está intrinsecamente ligada à uma vida de dedicação à preservação e à valorização do bioma. Ele conta ao Correio que antes mesmo de entrar para a faculdade, já tinha o sonho de fundar a instituição. Yuri relata que ainda durante a graduação em Geografia ele descobriu que não havia uma instituição focada exclusivamente no Cerrado, e que isso propulsionou a criação do Instituto.
“Também fiz especialização, mestrado, doutorado em ciências florestais e outras formações, sempre buscando proteger o Cerrado, entender como proteger o Cerrado, gerando ciência para isso”.
O fotógrafo André Dib revela, também compartilha no olhar — por meio de suas imagens — e nas palavras sua paixão pelo bioma.
“Sempre gostei de estar na natureza, e a fotografia veio como consequência disso. Conheci o Cerrado mais preservado na Serra da Canastra. Os horizontes largos do Cerrado brasileiro, as águas cristalinas, as trilhas e a presença de fauna, como o lobo-guará, fizeram eu ter contato mais íntimo com a natureza e me instigaram a retratar esse lado pulsante que existe no Brasil”, contou Dib.