Férias são um desafio para crianças no espectro autista
Mudança na rotina pode ser um problema. Manter previsibilidade é fundamental
O recesso escolar impõe desafios extras às famílias de crianças neurodivergentes, especialmente em relação ao Transtorno do Espectro Autista (TEA). A quebra da rotina previsível, comum durante o período letivo, pode gerar instabilidade emocional e alterações de comportamento, já que a estrutura do dia a dia é fundamental para o bem-estar e a sensação de segurança desses jovens.
Segundo a neuropsicopedagoga Silvia Kelly Bosi, CEO da Potência – Clínica de Desenvolvimento Infantil –, o período de férias não precisa representar uma quebra drástica na rotina. “As férias podem ser uma pausa planejada, com adaptações que respeitem os horários de sono, alimentação, terapias e lazer”, explicou.
Sobrecarga
Ao Correio da Manhã, a especialista alerta que interromper bruscamente os hábitos pode causar sobrecarga sensorial, irritabilidade e até retrocessos em habilidades previamente adquiridas. Por isso, ela recomenda manter as terapias previstas no plano de desenvolvimento, ajustando os horários quando necessário.
Entre as sugestões indicadas por Silvia, está o uso de rotinas visuais. Montar um calendário com desenhos das atividades diárias ajuda a reduzir a ansiedade. Além disso, manter padrões de sono e alimentação, mesmo com alguma flexibilidade, evita desorganizações.
Tarefas
Outro ponto é a inclusão de tarefas estruturadas. Jogos, culinária ou artesanato são exemplos de atividades com início, meio e fim, que contribuem para a manutenção do foco e da organização interna da criança.
A neuropsicopedagoga também destaca a importância de permitir que a criança participe das escolhas diárias. Isso pode ser feito em decisões simples, como qual brincadeira fazer ou para onde passear. Essa participação contribui para o desenvolvimento da autonomia e para o engajamento nas atividades.
Além disso, Silvia recomenda alternar momentos de maior estímulo com pausas. Essa intercalagem evita crises e ajuda no equilíbrio sensorial. Mudanças na programação também devem ser avisadas com antecedência para que a criança se sinta segura.
“O bem-estar da família também deve ser levado em conta. O ambiente emocionalmente equilibrado favorece todas as relações dentro de casa”, afirmou Silvia.
Férias
Essa necessidade de planejamento familiar também é percebida na rotina de Thalyta Lima, de 34 anos, mãe de Ravi, de 8 anos, que está no espectro autista grau 2, necessitando de suporte moderado. “Ele pergunta se no dia seguinte tem aula ou se vai ver os amigos. Aí, a gente explica que está de recesso, que a professora está descansando, e que logo tudo volta”, contou.
Segundo Thalyta, é nesse momento que o filho sente mais falta da previsibilidade comum ao período letivo. Essas perguntas são constantes, e a família tenta responder com paciência. Segundo ela, a falta de rotina deixa Ravi mais sensível e sujeito a episódios de choro.
“Não são crises agressivas, mas de frustração. Ele chora por não entender porque não pode ir para a escola. Ravi não compreende o que são férias ou recesso, mesmo a gente explicando”, relatou.
Durante esses dias, ele costuma pedir para sair, visitar familiares ou ir ao mercado. Segundo Thalyta, ela atende quando possível, mas também considera importante que o filho aprenda a lidar com a falta de atividades.
“Acho importante que ele tenha esse tempo ocioso, que compreenda que nem tudo vai ser atendido do jeito dele. Isso também faz parte do aprendizado”, afirmou.
E como fica a mãe?
Cuidar de uma criança neurodivergente exige dedicação intensa, mas o bem-estar dos cuidadores também precisa de atenção. Silvia comenta que o autocuidado parental é fundamental para manter a qualidade do cuidado com o filho. Criar uma rede de apoio, dividir tarefas, reservar pequenos momentos de pausa e adotar uma postura mais flexível ajudam a aliviar a sobrecarga.
O apoio psicológico, como a terapia parental, também pode ser um recurso importante para fortalecer emocionalmente quem cuida. “Cuidar de si não é negligência e sim sustento para cuidar melhor”, pontuou a neuropsicopedagoga.
Thalyta relatou que, no passado, enfrentou dificuldades maiores com essas alterações na rotina. Segundo a mãe, houve momentos de frustração e choro, tanto por parte do filho quanto dela.
“Hoje lido com mais tranquilidade. Mas já chorei muito. A gente vai aprendendo com o tempo. Eu entendi que preciso acolher e explicar. Se ele perguntar 20 vezes sobre a escola, a gente responde 20 vezes”, disse.
Expectativas e Frustrações
Mesmo contando com rede de apoio, ela disse que às vezes precisa cancelar ou remarcar compromissos. Isso ocorre, principalmente, quando se percebem sinais de irritabilidade no filho.
“Tem dia em que ele está mais agitado, então a gente prefere ficar em casa. Assim ele se sente mais seguro”, contou.
Ela relatou que essas reações costumam ocorrer quando o filho tem uma expectativa que não pode ser atendida. Um exemplo é quando ele espera ir à escola e não compreende por que não pode.
“Quando a gente não consegue suprir o que ele espera, é que aparecem essas crises. Mas a previsibilidade e a escuta ajudam muito”, afirmou.
A neuropsicopedagoga Silvia Kelly reforça que esse tipo de resposta é comum em crianças atípicas, mas que com planejamento é possível transformar as férias em um período de conexão.
“Com organização e escuta ativa, o recesso não precisa causar prejuízos. Pode ser um tempo de fortalecimento de vínculos, sem abrir mão do desenvolvimento da criança”, concluiu.
Situações públicas podem ser desafiadoras para crianças neurodivergentes, especialmente quando seus comportamentos não seguem padrões sociais convencionais. Para lidar melhor com esses momentos, Silvia recomenda algumas estratégias:
“Preparar a criança com antecedência para os passeios, combinar sinais que indiquem desconforto, adotar uma postura firme diante de julgamentos e oferecer apoio emocional após o evento. Além disso, a psicoeducação — tanto da criança quanto da sociedade — é essencial para ampliar a compreensão sobre a neurodiversidade”, detalhou a especialista.
Neurodivergente e neurotípico
Neurodivergente é o termo utilizado para se referir a pessoas cujo funcionamento neurológico foge do padrão esperado, como no caso do TEA. Já o termo neurotípico se refere àquelas cujo desenvolvimento segue os padrões esperados pela maioria da sociedade.
No último dia 10, a Câmara dos Deputados aprovou a criação do Dia Nacional do Orgulho Autista, a ser celebrado em 18 de junho. A data será incluída na Lei 13.652/18, que já instituía o Dia Nacional de Conscientização do Autismo, em 2 de abril. Como o texto foi alterado, o projeto retorna ao Senado para nova votação. O Projeto de Lei 3391/20 é de autoria do senador Romário (PL-RJ).