Triste retrato dos "cidadãos de segundo classe"

Instituto identifica que jovens da periferia não se consideram dignos de direitos sociais

Por Mateus Lincoln

Pesquisa mostra que jovens da periferia não sabem quais são seus direitos

O Instituto Nelson Wilians (INW) divulgou recentemente seu Relatório de Impacto Social 2024. A análise do material pode demonstrar uma amostra da realidade da juventude brasileira em regiões periféricas aos grandes centros, onde o INW costuma atuar, e, além disso, pode ser utilizada como um espelho de como esses jovens percebem o presente e o futuro do país.

Segundo Anne Wilians, fundadora e diretora-presidente do INW, esse cenário é fruto da desigualdade de oportunidades e da ausência de formação adequada. “O conhecimento sobre direitos e deveres ainda é restrito, especialmente em locais mais vulneráveis”, diz. Para enfrentar esse desafio, o instituto investe em metodologias próprias de formação cidadã.

O documento reúne dados, depoimentos e análises sobre os projetos desenvolvidos ao longo do ano e aponta caminhos para ampliar o acesso à justiça e à cidadania. Segundo o relatório, mais de 75 mil pessoas foram beneficiadas em ações realizadas em diversos estados do país.

Sem direitos

A atuação do Instituto Nelson Wilians (INW) em diferentes territórios do Brasil tem evidenciado um padrão comum entre os jovens de comunidades vulneráveis: muitos não se percebem como sujeitos de direitos. Essa constatação foi reforçada por relatos colhidos durante as ações do instituto, em especial nos projetos voltados à formação cidadã, como o “Compartilhando Direito”, o “Cidadaniar” e os mutirões jurídicos com escuta ativa.

Para Anne Wilians, essa percepção limitada sobre os próprios direitos está diretamente ligada à falta de acesso à informação, à ausência de referências e a uma vivência histórica de exclusão. “Ao longo das oficinas e formações, ouvimos jovens afirmarem que não sabiam o que era cidadania e que nunca foram chamados a participar de decisões em suas escolas ou comunidades. Isso revela um distanciamento profundo entre esses jovens e o Estado”, afirma.

O Instituto percebeu que, muitas vezes, esses jovens acreditam que o acesso à educação de qualidade, à saúde, ao trabalho e à moradia são privilégios, e não direitos garantidos pela Constituição. Em alguns depoimentos registrados, os participantes mencionaram que “nunca foram à escola por completo”, “não sabiam que tinham direito a uma defensoria pública” ou que “o bairro onde moram nunca teve presença de nenhum serviço social do governo”.

Esses relatos foram organizados ao longo dos últimos anos por meio de instrumentos como rodas de conversa, questionários e oficinas de escuta, e também com base também na experiência dos voluntários do Instituto. A metodologia desenvolvida pelo INW prevê, antes de qualquer conteúdo jurídico, uma etapa de acolhimento e conversa sobre o que os participantes conhecem sobre seus direitos e deveres. É nesse momento que os educadores e facilitadores notam o desconhecimento ou até mesmo a descrença nos próprios direitos.

Cidadania

Um dos sinais mais evidentes dessa realidade é o número de jovens que nunca tiveram contato com o conceito de cidadania. Anne explica que, para muitos, “cidadania” é uma palavra distante, que remete a algo institucional, fora do alcance do cotidiano. “O jovem não se reconhece como parte da sociedade de forma plena. Ele sabe que existe uma desigualdade, mas não sabe que ela pode e deve ser enfrentada com base em direitos coletivos”, diz.

O distanciamento entre o jovem e os sistemas de justiça, saúde, educação e assistência social também se reflete na baixa procura por serviços públicos. Muitos não sabem como acessar a defensoria pública, como tirar um título de eleitor ou como denunciar uma violação de direitos. Há, ainda, casos de jovens que acreditam que, por terem familiares com histórico de prisão, por exemplo, eles próprios não teriam direito à proteção do Estado.

Esse sentimento de desvalorização é reforçado, segundo o INW, pelo racismo estrutural, pela violência nos territórios e pela ausência de políticas públicas eficazes. Por isso, os programas do Instituto se propõe não apenas a informar, mas também a reconstruir o senso de pertencimento e dignidade desses jovens.

“Nosso papel é mostrar que o conhecimento jurídico não é exclusivo de quem fez faculdade de direito. Todos têm direito a entender as leis que regem a sociedade e a saber como acessá-las”, afirma Anne. Ao compreender o significado de justiça, cidadania e igualdade, os participantes passam a se ver como agentes de transformação em suas comunidades.

Essa abordagem, segundo ela, parte da escuta ativa, do diálogo constante e da formação em direitos básicos. O Instituto entende que só é possível superar a naturalização da desigualdade quando os jovens se reconhecem como cidadãos com direitos e deveres. “É nesse processo que se inicia a mudança. Primeiro vem o reconhecimento, depois a ação”, conclui.

O instituto

Com sede em São Paulo e atuação nacional, o INW concentra suas atividades em três frentes: acesso à justiça, educação para a cidadania e inclusão produtiva. O INW tem reconhecimento em suas ações. Por exemplo, o “Compartilhando Direito”, criado para disseminar informações jurídicas de forma acessível, recebeu o Selo de Direitos Humanos e Diversidade da Prefeitura de São Paulo e será implementado na rede pública de ensino a partir de 2025. Já o “Cidadaniar” é realizado em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Na área do acesso à justiça, o instituto mantém dois programas principais: o Pro Bono e os mutirões jurídicos. Ambos oferecem assessoria jurídica gratuita para pessoas em situação de vulnerabilidade e também para organizações sociais. Segundo Anne, o voluntariado é um dos pilares dessas ações. “Acreditamos na força do coletivo. O conhecimento jurídico não pode ser privilégio de poucos”, diz.

O Instituto Nelson Wilians atua no campo do terceiro setor, promovendo ações sem fins lucrativos com o apoio de profissionais voluntários. A organização defende que o conhecimento jurídico e a formação cidadã devem ser acessíveis a todos, independentemente da condição social ou local de origem.