Por: Ana Paula Marques

Quando a imprensa justifica a violência contra a mulher

Uma em cada cinco matérias publicadas no mundo tenta justificar violência contra a mulher | Foto: Gabriela Gallo/Correio da Manhã

Há 108 anos, Jeanette Rankin tornou-se a primeira mulher eleita para o Congresso no mundo, nos Estados Unidos. Há 96 anos, Alzira Soriano tornou-se a primeira mulher eleita para um cargo no Executivo na América Latina, prefeita do município de Lajes, no Rio Grande do Norte. Um século depois das conquistas dessas mulheres, porém, o mundo ainda continua tristemente machista.

Um relatório realizado pela LLYC, empresa global de comunicação e relações-públicas, revelou que 20% das notícias sobre violência de gênero produzidas em 12 países justificam as agressões contra as mulheres. São uma em cada cinco notícias, conforme os dados obtidos pela ferramenta de Inteligência Artificial (AI) "The Purple Check", que detecta os vieses presentes em notícias relacionadas a questões de gênero.

Para o levantamento de dados, a equipe de Deep Learning (em tradução literal, Aprendizado Profundo) da consultoria analisou 226,2 milhões de artigos de notícias gerais, 5,4 milhões de notícias sobre violência de gênero e 14 milhões de mensagens na rede social X (antigo Twitter) relacionadas à violência de gênero nos países ao longo de um ano. Dentre os países pesquisados, estão Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos, México, Panamá, Peru, Portugal e República Dominicana.

Segundo os dados, a Espanha é o país onde mais se fala sobre violência de gênero, enquanto na América Latina, o tema se destaca nos noticiários, mas não nas redes sociais. Já nos Estados Unidos, a agressão é justificada duas vezes mais do que na média de todos os outros países.

Relatório

A pesquisa utilizou Large Language Models (em tradução literal, Amplos Modelos de Linguagem) — um tipo de modelo de Inteligência Artificial que consegue entender e gerar textos — para identificar e isolar descrições de vítimas e agressores em notícias públicas.

A autora do relatório, Luisa García, Sócia e diretora operacional Global da LLYC, destaca que dar visibilidade à violência de gênero é fundamental para erradicá-la. “No entanto, fazê-lo mal pode ser contraproducente, gerando sensacionalismo e causando dupla vitimização. Nós queremos não apenas destacar esse risco, mas também fornecer ferramentas para evitá-lo”, explicou.

Por isso, além do relatório, a ferramenta “The Purple Check” permite verificação de texto para averiguar se as palavras estão corretas ou se incluem um viés. É só entrar no site, anexar o texto na caixa e a ferramenta irá verificar e recomendar uma solução alternativa de como dizer o mesmo para informar sem promover ou justificar a agressão.

Segundo a psicóloga Claudia Melo, as justificativas frágil para a violência de gênero em notícias e discursos públicos pode ser explicadas por diversos fatores. “A perpetuação de estereótipos de gênero, a naturalização da violência, a cultura do machismo e da misoginia, a falta de educação sobre igualdade de gênero, além da desigualdade estrutural entre os gêneros femininos e masculinos, então, sempre haverá a tentativa de justificar a violência sofrida pelas mulheres”, explica.

Para a especialista, apesar do avanço nas discussões, não é uma prática simples modificar a mentalidade e isso poderia explicar o porquê das justificativas no noticiário.

Impunidade

Em 2023, ao menos oito mulheres foram vítimas de violência a cada dia, apenas nos estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo, segundo os dados do relatório “Elas Vivem”, elaborado pela Rede de Observatórios da Segurança, revelados no início de fevereiro.

Ao todo, 3.181 brasileiras registraram queixas, o que representa um aumento de 22% em relação ao ano anterior. Foram registrados 586 feminicídios, o que significa que a cada 15 horas houve um assassinato motivado por razões de gênero, menosprezo ou discriminação contra mulheres. Os crimes foram cometidos, principalmente, por pessoas próximas à vítima, como seus ex ou atuais parceiros, 72,7% dos casos, geralmente com a utilização de armas brancas em 38,12% das vezes ou por armas de fogo, em 23,75%.

Na comparação com 2022, os dados mostram São Paulo como o único estado a ultrapassar mil eventos de violência — alta de 20,38%, de 898 para 1.081 casos. Em seguida, vem o Rio de Janeiro, que registrou 13,94% um aumento de 545 para 621 a mais que no ano anterior. Já o Piauí, embora registre menos casos em números absolutos, é o estado que registrou a maior taxa de crescimento, ao todo 80% de alta em um ano.

Daniel Alves

A impunidade parece não estar somente nas notícias. Na última semana, o ex-jogador de futebol Daniel Alves foi solto após pagar um milhão de euros, cerca de R$ 5,4 milhões de fiança à Justiça da Espanha. Ele estava preso desde janeiro de 2023, quando condenado a 4 anos e meio de prisão por estuprar uma jovem em uma boate, em Barcelona.

A sentença determinava uma pena de liberdade vigiada de cinco anos assim que Daniel Alves cumprir o tempo de detenção. Entretanto, a defesa do ex-jogador recorreu da sentença e pediu a liberdade do ex-atleta até esgotar a possibilidade de recurso. O jogador não informou onde ele ficará durante o período de liberdade, mas é esperado que ele fique em sua mansão em Barcelona, avaliada em R$ 27 milhões.

A sensação é que, com uma quantidade certa de dinheiro, um homem pode sair ileso de qualquer situação. De acordo com o Celebrity Net Worth, portal especializado em riqueza de celebridades, o patrimônio total de Daniel Alves é de 60 milhões de euros, cerca de R$ 330 milhões, na cotação atual. Com esse dinheiro, por exemplo, Daniel Alves poderia pagar a fiança 61 vezes.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.