Por: Rudolfo Lago

Apesar do silêncio de Lula, 60 anos do golpe serão lembrados

Tropas de Mourão Filho chegam ao Rio em 1964 dar o golpe e instalar a ditadura no país | Foto: Arquivo Nacional

Intermediado pelo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estabeleceu um pacto com as Forças Armadas, que já andam fustigadas pelas investigações que associam militares de alta patente com uma suposta tentativa de abolição do estado democrático de direito e atos antidemocráticos. Esse pacto garantiu que, oficialmente, nem Exército, nem Marinha, nem Aeronáutica faça qualquer manifestação referente aos 60 anos do golpe militar de 1964, que mergulhou o país em mais de 20 anos de ditadura. O pacto, porém, estabelecia uma contrapartida. Da mesma forma, o governo não patrocinaria oficialmente qualquer evento em memória do golpe no sentido oposto, de denúncia das prisões, desaparecimentos e torturas que ocorreram.

O pacto de silêncio entre Lula e as Forças Armadas, porém, não impedirá que os 60 anos do golpe militar, ocorrido no dia 31 de março de 1964, sejam relembrados, de um lado ou de outro. Sem a chancela oficial do governo, a sociedade civil abraçou os atos que relembrarão a data. Da mesma forma, espera-se que os Clubes Militares que congregam oficiais da reserva também farão seus atos. Da mesma forma, sem a chancela das Forças Armadas ou a presença de militares da ativa.

80 atos

A Coalizão da Memória, Verdade, Reparação, Justiça e Democracia, que reúne 150 organizações da sociedade civil, já contabiliza 80 diferentes eventos pelo país destinados a lembrar os 60 anos do golpe de 1964 apenas entre os dias 31 de março e 6 de abril. “Outros eventos acontecerão, especialmente em universidades”, comenta o assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, ao Correio da Manhã.

Até Lula recomendar silêncio oficial, era Nilmário quem estava cuidando da participação do governo na memória do golpe. Agora, ele pessoalmente participará dos atos que acontecerão pela sociedade civil. Pessoalmente, não como representante do governo.

“Haveria um ato oficial do Ministério dos Direitos Humanos”, conta Nilmário. Esse ato iria anunciar a construção de um Museu da Democracia em Brasília. Não haverá mais. “Também se discutia algum tipo de propaganda lembrando a data. Também não haverá”, disse Nilmário. “Mas muita coisa acontecerá no país para que a data não seja esquecida”.

Silêncio

Curiosamente, o primeiro ato programado está batizado justamente de “Caminhada do Silêncio”. Acontecerá no domingo, 31 de março, em São Paulo. Manifestantes sairão do prédio onde funcionava na ditadura o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na rua Tutoia, até o Portão 10 do Parque do Ibirapuera, onde é o Memorial dos Desaparecidos.

A partir da segunda-feira, 1º de abril, os atos se intensificarão, especialmente no Rio de Janeiro e em Brasília.

Marcha reversa

Na segunda (1), acontecerá no Rio de Janeiro a “Marcha Reversa”. Manifestantes sairão da cidade, fazendo em sentido oposto o movimento que foi feito há 60 anos pelas tropas então comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho, que saíram da cidade de Juiz de Fora (MG) para ocupar o Rio e dar início ao golpe.

Agora, a família do ex-presidente João Goulart, que foi deposto em 1964, e manifestantes, entre eles Nilmário Miranda, percorrerão os 180 quilômetros que separam o Rio de Juiz de Fora em sentido inverso. Na cidade mineira, serão recebidos pela prefeita Margarida Salomão (PT).

Julgamentos

Embora funcione no Ministério dos Direitos Humanos, a Comissão de Anistia abraçou alguns dos atos. E como ela funciona no ministério, será lá que os atos acontecerão. No dia 2 de abril, acontecerão dois julgamentos simbólicos realizados pela comissão no auditório do ministério. O primeiro relatará as ações da ditadura contra o povo indígena Krenak. Diversos indígenas foram torturados e perseguidos pelo regime militar. O julgamento fará a reparação simbólica.

No mesmo dia, será feito o julgamento simbólico do caso de nove chineses, que três dias somente depois do golpe em 1964 foram presos e torturados pelo regime como espiões. Eles seriam apenas funcionários da Embaixada da China.

No dia 3, a Comissão de Anistia faz uma reparação a Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões do DOI-Codi de São Paulo, em 1975.

Ainda estão programados shows e outros eventos. Na quinta-feira (28), em Brasília, aconteceu no Clube do Choro o espetáculo “É Preciso estar Atento e Forte”, somente com músicas que foram censuradas pelo regime. Show semelhante acontecerá no dia 11 de abril em Teófilo Otoni, cidade natal de Nilmário Miranda. No mesmo dia, pessoas que foram presas pelo regime serão homenageadas, inclusive o próprio pai de Nilmário, Oldack.

“A coisa ganhou vida própria”, diz Nilmário, ele mesmo um militante de esquerda que foi preso e torturado na ditadura. “Anistia, Comissão da Verdade, direto à memória são políticas de Estado, não são de um governo ou outro”, afirma. “Mas eu compreendo as delicadezas políticas do momento”, continua, referindo-se à posição discreta recomendada por Lula. “Eu jamais me chocarei com o presidente Lula. Ele é meu líder, é o técnico do meu time”, conclui.

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