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Em 100 anos, a educação brasileira ainda tem muito a aprender

O professor Renato Bulcão falou ao Correio da Manhã sobre a educação no Brasil | Foto: Divulgação

Por Pedro Sobreiro

Ano após ano, governo após governo, a educação segue como um problema que parece estar cada vez mais distante de uma solução no Brasil. No início deste ano, a Unicef publicou um levantamento baseado nos dados de 2021 do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), indicando que 56% das crianças do segundo ano do ensino fundamental não sabem ler corretamente.

Ou seja, mais de metade dessas crianças não foram corretamente alfabetizadas. Além disso, principalmente após o fim da pandemia de Covid-19, os governos brasileiros passaram a ter de lidar com uma crescente evasão escolar.

Diante de uma situação tão caótica e problemática do ensino escolar brasileiro, o professor, pesquisador e Doutor em Educação e História da Cultura, Renato Bulcão, fez uma longa análise do cenário da educação brasileira nos últimos 100 anos em seu livro "Tratado da Má Educação", que foi publicado no final de 2023 e está disponível para vendas nas lojas, além de ter a versão digital gratuita disponibilizada ao público no site www.tratadodamaeducacao.org.

Em entrevista ao CORREIO DA MANHÃ, o professor Renato Bulcão falou um pouco mais do livro e sobre os principais problemas identificados em sua pesquisa sobre o cenário da educação nacional.

O professor disse que o recorte dos 100 anos da educação se deu para conseguir abranger e compreender um pouco melhor os rumos que levaram a educação a chegar onde chegou.

"Nos últimos 50 anos conseguimos colocar mais crianças nas escolas em todos os níveis. Nos últimos 20 anos, ultrapassamos 92% das crianças pequenas nas escolas. Também conseguimos por mais gente nas universidades. Houve um avanço em termos de quantidade. Mas há 100 anos atrás estávamos mantendo a população negra escravizada e a indígena nas florestas, todos subordinados à Casa Grande. Hoje tentamos uma integração cidadã através da educação", explicou o professor.

Compreender os problemas de uma educação defasada parte, querendo ou não, por uma jornada pela história política do país. Afinal, existem diversos estudos promovidos por universidades que abordam anualmente a educação e possíveis soluções, mas esbarram em uma dificuldade de comunicação com os governos que devem efetivamente implantar as estratégias.

"As propostas de esquerda vêm dominando o MEC desde o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1994. Mas o que ninguém diz, e está cada dia mais claro, é que as esquerdas são várias e brigam entre si, enquanto a direita e mesmo a extrema direita, tem mais pontos em comum e entende melhor a necessidade de aliança e compromisso. A esquerda identitária não se deu conta que faz o jogo do capitalismo financeiro: cada consumidor e seus centavos suados, contam para dar lucro ao sistema rentista. Para essa direita financeira, apoiar as questões de gênero e etnia substitui a velha percepção da luta de classes, a ideia de que alguns tem, e a maioria não tem. Como a universidade, principalmente a pública, é composta por professores que foram criados no mundo protegido da burguesia, tentam impor essa narrativa ao governo. Os governos Temer e Bolsonaro não entenderam isso por falta justamente de especialistas em educação com uma visão técnica. Ficaram no oba-oba da ideologia e da religião, como estamos vendo novamente acontecer com as primeiras propostas do deputado Nikolas Ferreira", disse.

Dentre os diversos casos da defasagem escolar, a evasão é um dos problemas mais graves enfrentados atualmente. No passado, houve uma tentativa polêmica no Rio de Janeiro de manter os alunos na escola por meio da 'aprovação automática'. Para o professor, a estratégia partiu de uma abordagem maior do contexto vivido pela cidade, em que era um momento em que valia mais manter a criança na escola do que na rua.

"Nos anos 1970 havia um problema muito sério de defasagem de idade nos antigos ginásios públicos: Meninos, que sempre foram maiores repetentes do que as meninas, formavam grupos de ameaça e bullying nas classes do final do primeiro grau e por todo segundo grau. Eram jovens de 16 a 20 anos que ainda estavam na escola e que controlavam os demais alunos na base da violência cometendo muitas vezes assédio e abuso sexual contra as colegas mais jovens. Isso acabou no Rio com a introdução do mecanismo de aprovação automática, pois esses repetentes contumazes deixaram de ter espaço nas escolas. A violência nas escolas públicas do Rio continua a existir, mas está menos dentro da sala de aula, e mais na porta da escola", explicou.

E dentre as diversas abordagens da pesquisa em "Tratado da Má Educação", o professor Bulcão aponta soluções e ações que devem ser usadas para identificar os erros na condução da educação.

"Existem 2 momentos principais da evasão: do 5. Ano para o 6º Ano; e do 8º Ano para o ensino médio. O terceiro momento é no final do 1º ano do ensino médio. Do 5º ano para o 6º ano, é necessário haver maior integração de currículo e práticas didático-pedagógicas entre as escolas municipais e as escolas estaduais. Os alunos têm de sentir uma continuidade no ensino. No 5º ano eles têm um professor que cuida de tudo para eles, e no 6º ano tem de se virar com diversos professores, por exemplo. No final do 8º ano da escola pública eles precisam saber que o ensino médio vai permitir uma integração com o mercado de trabalho. Seja com o ensino profissionalizante, ou um ensino geral que permita que eles procurem trabalho nos serviços ou no comércio, desde o primeiro dia de aula precisam entender que as disciplinas oferecidas os fazem saber fechar o caixa de uma loja, entender a classificação dos remédios ou mesmo as questões de medida de peso e de volume nas embalagens de supermercado", disse.

"No final do primeiro ano do ensino médio, eles precisam saber que não viveram um ano inútil. Não pode acontecer que a educação burguesa de filhos de rico que vivem em seus condomínios protegidos imponha uma realidade da qual eles desde pequenos sabem que não fazem parte. Essa mentira descarada é que os institutos de educação das universidades públicas dizem que é libertadora, mas no fundo é apenas enganadora, e acaba deixando o aluno pobre condenado a ser porteiro de prédio, diarista ou entregador de aplicativo", concluiu.

Questionado sobre as tão faladas cotas, o professor disse que a chave para a educação básica a todos está no governo passar a tratar a gestão educacional como uma ferramenta de bomuso de recurso público.

"A política de cotas nasce do princípio que para haver meritocracia, as pessoas precisam dar a largada de pontos de partida diferentes. Ela tem uma origem remota nas competições esportivas dos anos 1950 e1960, quando nadadores ou corredores mais jovens competiam diretamente com atletas de ponta. Até hoje isso está presente nas corridas populares de maratona. Penso que assim a população entende melhor o que é a política de cotas. Já imaginou o Neymar jogando bola contra 10 crianças de 8 anos? Ele sozinho ganha o jogo. Agora o acesso à educação básica para todos depende muito mais de gestões de educação que visem melhorar o custo-benefício do dinheiro público. Na hora em que os gestores e políticos em geral perceberem que todos ganham mais com uma manutenção constante das escolas, com uma segurança social mantida pela comunidade que abraça a escola, e com mais pagamento de impostos diretos e indiretos ao município por causa de uma maior atividade econômica, a coisa muda, como mudou na Europa, na China ou na Coreia do Sul", comentou.

Por fim, quando questionado quem era o público-alvo de seu livro, o professor Renato Bulcão afirmou que pretende dialogar com os professores, mas que já está trabalhando em uma nova versão com menos jeito de "tese" e leitura mais fluida.

"O Tratado da Má Educação tem como público primeiro as professoras de todas as fases da educação. Mas percebi rapidamente que o livro, escrito com base na forma acadêmica de escrever uma tese, é uma leitura muito chata para quem tem de dar aula em dois empregos, ganhando mal.

Então estou terminando de reescrever o livro, agora com o nome de Segundo Tratado da Má Educação. O conteúdo está sendo resumido em metade das páginas com um português mais fácil e gostoso de ler. A ideia é que os professores percebam o que está errado no dia a dia delas, e comecem a impedir que essa quantidade gigantesca de alunos pobres seja empurrada para o subemprego e condenada a morar em favelas. Manter a pobreza é como insistir na escravidão. Isso é Má Educação!", concluiu.

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