Por: Gabriela Gallo

A história de Brasília e do Brasil contada por um "anônimo"

Pai e filho visitam a Casa do Pequeno Jornaleiro | Foto: Arquivo

Inaugurada em 1960, Brasília é uma cidade jovem com moradores que têm uma idade avançada em relação a ela. Esse é o caso de Leobertino Rodrigues Lima, ex-jornaleiro e subtenente reformado da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), pioneiro da capital federal. Ele é o biografado do livro “Lió - O pequeno jornaleiro”, escrito pelo seu próprio filho Leobertino Lima Filho. A obra será lançada nesta quinta-feira (14), um dia após o aniversário de 86 anos de Lió, às 9h na Casa do Pioneiro, no Núcleo Bandeirante (DF).

Em entrevista exclusiva ao Correio da Manhã, Leobertino Filho contou que tudo começou quando ele se aposentou da carreira militar. Apesar de sempre ter sido muito próximo de seu pai, depois da aposentadoria ele criou uma rotina familiar de visitar o pai com frequência para conversarem e tomarem um café juntos. E o que começou como uma mera reunião de família, se tornou um projeto literário.

“O projeto começou com a gente ouvindo a história de uma pessoa idosa da família e interagindo com outras pessoas. Ficávamos conversando e ele foi me contando a história dele e a história foi ficando interessante. Eu comecei a gravar a história e nós [ele e os irmãos] começamos a trabalhar em um livro”, ele relatou à reportagem.

Trajetória

Lió nasceu em Barra, município da Bahia, no encontro do Rio Grande com o Rio São Francisco. Com 12 anos de idade, ele partiu sozinho para o Rio de Janeiro para se encontrar com um irmão e tentar mudar de vida. Com muito otimismo e um sonho de ampliar seus horizontes, ele trabalhou como jornaleiro na Cidade Maravilhosa, e ficou abrigado na “Casa do Pequeno Jornaleiro”, da Fundação Darcy Vargas. Fundada em 1938, o lugar é uma espécie de orfanato, que oferecia abrigo, alimento, atendimento médico e estudo, para jovens distribuidores de jornais no centro do Rio de Janeiro.

Depois de mais velho, Leobertino entrou na Polícia Militar e constituiu família. Em 1967, veio sozinho para a nova capital do país, dessa vez como funcionário público. Em 1968, a esposa de Lió e os cinco filhos, incluindo Leobertino, que na época tinha apenas seis meses de idade, se mudaram para Brasília. A família estava completa.

“Meu pai conseguiu vencer os desafios da vida pela positividade dele. Ele sempre via o lado positivo das coisas, nunca relatou problemas. Ele viu em Brasília oportunidades para crescer dentro da profissão, de construir família e educar os filhos”, contou com admiração Leobertino Filho.

Leobertino Filho acredita que o pai não teria chegado onde chegou sem apoio familiar, ele ainda reforçou que a história se torna cada vez mais interessante já que “é uma história que poderia ter dado tudo errado”.
“Uma criança sozinha no Rio de Janeiro era uma situação que poderia levá-lo a seguir outros caminhos. Com apenas 12 anos, ele já tinha uma noção do que ele queria para a vida dele, isso graças à formação que ele teve desde novo com a mãe e o pai”, completou.

Ancestralidade

Leobertino pai e filho são homens negros e a história, além de trazer a perspectiva de um imigrante nordestino, detalha a experiência racial do biografado ao longo dos anos. “A idade racial no Brasil é uma questão complexa. O meu pai nasceu 50 anos depois da abolição da escravidão no Brasil, então era muito recente”, explicou o filho.

O livro retrata histórias e situações que representavam tanto as percepções do ex-jornaleiro quanto da sociedade na época sobre os negros e indígenas. Como um exemplo, Leobertino contou que a família do pai é católica e, quanto o padre vinha visitá-los em Barra, ele distinguia os negros de Salvador e os outros. Na época, o padre pedia para que a família não se misturasse com os negros de Salvador. “Eles são 1mandingueiros’”, referindo-se à forte presença de religiões de matriz africana na capital da Bahia.

Dessa forma, o livro trata sobre Intolerância religiosa, racismo, subdivisão de classes e outras cicatrizes da história do nosso país.

Macaque in the trees
Lió jovem, na Polícia Militar | Foto: Arquivo pessoal

“Isso está relacionado com o processo histórico do país, do fim da escravidão em diante, que vem tendo seus efeitos durante o tempo. Então, quando a gente volta, a gente começa a entender alguns processos da própria sociedade a partir da história de vida dele”, destacou Leo Filho.

“Tornar-se negro no Brasil é sempre uma busca diária, de você ir se aprofundando nos temas da negritude, buscar ler e entender. Eu acredito que a postura do meu pai e da minha mãe ajudaram muito a gente a procurar um caminho, mas esse caminho continua ao longo da vida”, ele pontuou.

Para a reportagem, Leobertino ainda destacou a importância do contato com a ancestralidade. Para o policial aposentado, “ao conhecer as suas histórias familiares você também se conhece”.

“Tanto que uma das coisas que foi renegada à raça negra é o autoconhecimento, o conhecimento das suas origens. A partir do momento em que você visita a sua ancestralidade, você vê os heróis dos seus familiares, você começa a formar uma identidade. Você vê que as pessoas que estavam ao seu lado foram importantes para você ser quem você é hoje”, ele enfatizou.

Planos

À reportagem, Leobertino Filho disse que a família tem planos de lançar outros livros semelhantes. A proposta é contar outras histórias de pessoas “anônimas” na capital federal. Como se trata de um projeto experimental, eles estão focados no lançamento do livro do pai e seguem na busca da segunda história.

“Quantas histórias a gente não tem de pessoas vivas, que estão bem e lúcidas, e poderiam ser contadas? Às vezes a gente conta uma história à partir de pessoas famosas e já são reconhecidas. Mas as pessoas vistas como “anônimas” a gente pode tirar muitas outras histórias, as visões de mundo dela, o que elas fizeram, as percepções”, contou.

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