Ainda nos anos 2000, Rita Lee já falava da inquietação feminina em querer segurar todas as arestas da vida. Nos versos de sua música “Pagu”, os trechos sobre “sou mais macho que muito homem” e “eu sou pau pra toda obra” ressoam a preocupação de assumir papéis duplos e triplos, sendo mulher, trabalhadora e dona de casa. E ainda tentar ser vista e ouvida em ambientes com predominância masculina. O título da canção é uma referência à poetisa, escritora, desenhista e jornalista Patrícia Rehder Galvão, conhecida como Pagu. Ex-mulher do também escritor modernista Oswald de Andrade, Pagu foi uma referência do feminismo brasileiro no início do século passado.
Essas preocupações ressoam no cotidiano de mulheres que, para conseguir a independência, precisam trabalhar de madrugada, se expondo aos riscos noturnos. Há também mulheres que avançam com autoridade em espaços “masculinos”. Um desses casos é a conselheira substituta e primeira mulher a presidir a Associação Nacional dos Membros dos Tribunais de Contas Substitutos (Audicon), Milene Cunha, que vem lutando para ganhar espaço no meio jurídico.
Natural de Patos de Minas (MG), a conselheira trilhou seu caminho em áreas dominadas por homens desde cedo. “Sempre entendi que a educação seria o único caminho e oportunidade que eu teria para construir um futuro diferente da minha família”, contou em entrevista exclusiva ao Correio da Manhã.
Sem mulheres
Os dados de 2023 do Tribunal de Contas da União (TCU) mostram que, dos 226 conselheiros/ministros titulares dos Tribunais de Contas brasileiros, 88% são homens. Além disso, a ausência de representatividade feminina no topo da hierarquia administrativo-funcional é uma realidade, com 15 Tribunais de Contas do país sem mulheres em cargos de liderança. Mesmo entre os servidores efetivos dessas instituições, a disparidade persiste, com homens ocupando 62% das posições, em comparação com os 38% de mulheres.
A jornada de Milena no setor público começou com aprovação em diferentes concursos, até chegar ao cargo de conselheira substituta do Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE-PA), em 2012. Com apenas 31 anos na época, Milene conta que enfrentou novamente o desafio de se destacar em um ambiente predominantemente masculino.
“O universo dos Tribunais de Contas é um ambiente majoritariamente masculino e também de pessoas mais maduras. Então, às vezes, há um choque de visões de mundo, de experiências, de vivências que precisam ser administradas”, explica.
A conselheira acredita que a falta de representatividade feminina no setor público afeta diretamente as decisões tomadas. “Isso impacta sobremaneira na forma como as decisões e políticas são avaliadas pelos Tribunais de Contas. Na medida em que você tem apenas uma perspectiva masculina na análise do gasto público, retira-se da análise a visão feminina, principalmente nas políticas de igualdade de gênero.
“Rainha do meu tanque”
Em outro cenário, mas ainda predominantemente masculino, Vanessa Mello. de 33 anos, faz corridas por aplicativos à noite para conseguir sua independência. O perigo da noite não a impede de ir atrás de seus sonhos. Ela sempre desejou ajudar as pessoas, e viu na área da saúde a possibilidade de se sentir realizada.
Porém, as dificuldades financeiras a levaram a trabalhar em seu próprio carro e o sonho do curso de enfermagem foi se afastando de sua vista em seu retrovisor. Agora, ela se preocupa em sustentar sua casa, junto ao seu marido, e tentar conseguir um futuro melhor para suas duas filhas.
À noite, Vanessa relata serem mais homens ‘rodando’ na madrugada e, por isso, o ambiente se torna menos seguro para ela. “Uma vez estava indo pegar um passageiro. No local, ele me pediu para esperar e logo depois apareceram mais três homens, cercando meu carro. Eles iriam me assaltar. Então, dei partida e saí rápido de lá”, relata. “Desde então, tomo muito cuidado, vejo onde é o local e presto atenção em quem pediu a corrida”, disse.
Vanessa quer voltar a estudar e disse que anda fazendo mais corridas que o normal para conseguir realizar seu sonho.
“Remexo na inquisição”
Mas todo esse esforço de mulheres para alcançarem mais espaços vem com uma pesada sobrecarga de “exigências veladas”, já que ainda é cobrado que mulheres assumam os afazeres domésticos de suas casas, além de serem nomeadas cuidadoras oficiais quando necessário. Esses cuidados somados a trabalhos que, muitas vezes, não demonstram maior abertura para mulheres geram uma série de desafios que contribuem para uma sobrecarga, tanto emocional quanto profissional, segundo a Psicóloga Roseana Ribeiro.
“Minha força não é bruta”, como dizia Rita Lee. Apesar da sobrecarga, as mulheres seguem mantendo o malabarismo entre trabalhos, tarefas domésticas e cuidados gerais. E apesar das dificuldades, a profissional de saúde destaca a necessidade da presença feminina em ambientes predominantemente do sexto masculino.
“Acredito firmemente na necessidade de mulheres se inserirem no ambiente de trabalho, mesmo que predomine o sexo masculino. Embora tenhamos que enfrentar inicialmente sérios desafios já não é mais cabível uma possível discriminação no ambiente de trabalho. Pouco importa se são profissões que são mais procuradas por homens que mulheres. Hoje, há lugar para todos em muitos ambientes”, completou.
Na avaliação de Roseana Ribeiro, mais importante do que incentivar mulheres a ampliarem seus horizontes é reeducar homens a não se sentirem ameaçados com a presença feminina em ambientes predominantemente masculinos.
“Só um homem muito fraco e impotente sente-se ameaçado por uma colega de trabalho por ser mulher. Somos pessoas que necessitam de um lugar ao sol. Sol esse que hoje é extremamente competitivo para todos”, criticou a psicóloga.
Roseana ainda destacou que essa competividade desnecessária entre os sexos leva as mulheres a se sentirem desafiadas a provar sua competência “em quase todos os ambientes”. Como cantou Rita Lee, “Só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão”.
“Muitas vezes as mulheres sentem-se isoladas. No entanto, em um ambiente em que homens educam homens, isso pode melhorar e muito! Nada melhor que o tempo para que todos estejam reeducados e consigam conviver em harmonia para um bem maior”, reforçou a profissional.