Por: Rudolfo Lago

Vitória de Milei reorganiza direita no continente

Candidato da coalizão ultraliberal venceu com mais de 55% dos votos, com apoio de mais de 13 milhões de argentinos | Foto: Gabriel Sotelo /Fotoarena/Folhapress

Vítima durante boa parte da sua vida de tuberculose, em 1930, Manuel Bandeira tratou do seu drama no poema “Pneumotórax”. Depois de um exame, o médico constata um quadro gravíssimo: “O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infilitrado”. Bandeira, então, consulta o médico sobre a hipótese de uma intervenção mais drástica, o pneumotórax. No caso, seria um tipo de ventilação mecânica. E o médico lhe responde no poema: “É melhor tocar um tango argentino”.

A forma irônica como Manuel Bandeira descreve a sua doença brinca com o caráter trágico do argentino. O tango é a expressão musical da tragédia. Diante do resultado do segundo turno da eleição argentina, nenhuma solução drástica, como o pneumotórax, será solução. Será “melhor tocar um tango argentino”.

Nas ruas de Buenos Aires, tornou-se lugar comum comentar que se vencesse Javier Milei as eleições, a situação na Argentina ficaria “pior”. Se vencesse Sergio Massa, “muito pior”. Ou vice-versa, dependendo da opção eleitoral. O vencedor das eleições argentinas foi Javier Milei, o candidato de extrema-direita, da coalização La Libertad Avanza com 55,78% dos votos, contra 44,21% para Sergio Massa, o candidato governista, da coalizão Unión por La Patria. Uma vantagem muito maior que a apontada pelas últimas pesquisas. Pela lógica do próprio argentino, melhor não será. Mas os argentinos entenderam, se estiverem certos, que poderia ser “muito pior”.

“Sorte”

Ministro da Economia do atual governo Alberto Fernandez, Sergio Massa, candidato da coalização Frente de Todos, admitiu a derrota nas eleições pouco depois das 20h. Em discurso, ele anunciou que já tinha ligado para Milei e lhe desejado sorte. “Ele é o presidente que a maioria dos argentnos escolheu”, disse Massa.

Essa desilusão ajuda a explicar a baixa presença do eleitorado no segundo turno. Apenas 76% dos eleitores foram às urnas no país vizinho. Bem abaixo da média desde a redemocratização do país em 1983.

Na mesma linha, não se pode dizer que na Argentina tenha havido com Massa e Milei o mesmo processo de polarização política que se viu no Brasil com Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. No primeiro turno, Massa e Milei somaram somente 66,6% dos votos. Ou seja, quase metade da população argentina fez outras opções.

Lula

Pouco antes das 21h, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou uma nota em seu perfil no X (antigo Twitter), sobre o resultado das eleições argentinas. Na nota, ele não cita Javier Milei, fala apenas do resultado. “A democracia é a voz do povo, e ela deve ser sempre respeitada”, escreveu Lula. Meus parabéns às instituições argentinas pela condução do processo eleitoral e ao povo argentino que participou da jornada eleitoral de forma ordeira e pacífica. Desejo boa sorte e êxito ao novo governo”. Independentemente, porém, do resultado, Lula coloca o Brasil à disposição de Milei. “A Argentina é um grande país e merece todo o nosso respeito. O Brasil sempre estará à disposição para trabalhar junto com nossos irmãos argentinos”.

Desde o final do primeiro turno, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Itamaraty têm se mantido discretos com relação ao resultado eleitoral argentino, embora o presidente tenha registrado sua preferência por Sergio Massa. Lula acompanhou os resultados do Palácio da Alvorada sem fazer maiores comentários. Destoou, porém, dessa postura discreta uma postagem da esposa de Lula, Janja da Silva, no X. Janja postou um desenho que mostrava Mônica, a personagem de história em quadrinhos brasileira criada por Maurício de Souza, dando um abraço em Mafalda, personagem argentina criada por Quino. Janja, então, escreve acima do desenho: “Um abraço Massa”, numa clara referência ao candidato governista Sergio Massa, que acabou derrotado.

No primeiro turno, integrantes do governo, como o ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência, Paulo Pimenta, fizeram questão de mostrar proximidade com Massa, que terminou na frente no primeiro turno. Pimenta postou fotos ao lado de Massa.

Além disso, marqueteiros brasileiros ligados ao PT participaram da campanha de Massa. Para alguns analistas, a estratégia usada, de tentar imputar o medo diante de uma eventual vitória de Milei, acabou tendo efeito contrário. Em determinado momento da campanha, Milei chegou a usar em seu favor, diante dos ataques, um slogan usado por Lula na campanha de 2002: “A esperança vai vencer o medo”.

Diante da derrota de Massa, Lula optou pela nota nas redes sociais. Se Massa vencesse, a intenção era Lula telefonar para ele, cumprimentando-o. Quando Lula foi eleito, o presidente Alberto Fernandez, de quem Massa é ministro da Economia, foi o primeiro chefe de Estado a cumprimentá-lo. E no dia seguinte pegou um avião e foi se encontrar com Lula em Brasília.

Em princípio, Lula não deverá ir à posse de Milei no dia 10 de dezembro. Lula só poderia mudar de ideia se houvesse um convite formal de Milei para que ele fosse, modificando a relação na campanha, quando Milei criticou duramente Lula, chegando-o a chamá-lo de “corrupto”.

Relações

A forma como de fato Milei irá se relacionar com o Brasil é uma incógnita. De saída, significa uma nova possibilidade de reorganização das forças mais à direita no continente sul-americano, que tinham sofrido um revés após a vitória de Lula no Brasil e outros sucessos da esquerda no continente. No bairro de Águas Claras, um dos redutos do bolsonarismo no Distrito Federal, ouviram-se fogos após a notícia da vitória de Javier Milei na Argentina.

Também no X, o ex-presidente Jair Bolsonaro deu “parabéns” a Milei. “Parabéns ao povo argentino pela vitória com Milei”, escreveu Bolsonaro. “A esperança volta a brilhar na América do Sul. Que esses bons ventos alcancem os Estados Unidos e o Brasil para que a honestidade, o progresso e a liberdade voltem para todos nós”, comemorou o ex-presidente.

No segundo turno, Milei arrefeceu um pouco o discurso que fazia inicialmente de rompimento total com o Brasil e o Mercosul. Até pela necessidade que terá de compor com setores mais moderados para governar. Sua coalizão elegeu somente 37 dos 257 deputados e oito dos 72 senadores. Ele irá compor com os grupos ligados à coalizão Juntos por El Câmbio, de Patricia Bulrich, que ficou em terceiro lugar no primeiro turno, e do ex-presidente Mauricio Macri. Essa composição lhe garantiria maioria. A coalizão de Bulrich e Macri elegeu 93 deputados e 24 senadores. O grupo de Massa, que lhe fará oposição, elegeu 107 deputados e 34 senadores.

Bulrich era a candidata do empresariado argentino, que é contrário a propostas como o fechamento do Banco Central, a adoção do dólar como moeda e o fim das relações com o Mercosul.

A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás comente de China e Estados Unidos. Este ano, até outubro, o Brasil exportou US$ 14,9 bilhões para a Argentina, 5,3% do total. A Argentina responde por 40% das exportações brasileiras na América do Sul. Em contrapartida, entre janeiro e outubro, o Brasil importou US$ 10,2 bilhões, 5% do total importado no período.

Economia

As posições mais radicais do economista que se declara “anarco-capitalista” estão claramente relacionadas à gravíssima situação econômica da Argentina. Após a vitória de Milei, eleitores de Milei cantavam à frente do seu comitê de campanha uma palavra de ordem que ficou famosa na época do “corralito”, a pior crise econômica da história argentina em 2001: “Que se vão todos!”

Na ocasião, o então ministro da Economia, Domingo Cavallo, congelou todas as contas bancárias e determinou limites para saques bancários, numa ação semelhante, mas mais radical, que a de Fernando Collor no Brasil com o Plano Collor.

Agora, a inflação acumulada nos últimos 12 meses na Argentina foi de 142,7% em outubro. É a maior dos últimos 32 anos. Na América do Sul, só é menor que a inflação da Venezuela, que está em 333%. Por conta disso, 40,1% dos argentinos estão em situação de pobreza. A taxa de juros argentina é de 133% ao ano. A dívida bruta corresponde a 88,4% do Produto Interno Bruto (PIB).

Nesse sentido, a escolha de Massa como o candidato do governo é considerada por alguns um erro. Se o principal problema da Argentina é sua situação econômica, como a solução poderia ver do atual ministro da Economia? Diante da situação, a Argentina optou por radicalizar. Como cantava há 22 anos no “corralito”, os argentinos resolveram cantar outra vez: “Que se vão todos!”.

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