A brasileira Raquel Cantarelli vive um drama motivado por uma convenção internacional. Ela luta na Justiça há mais de dois meses para conseguir de volta a guarda das filhas Júlia, de 6 anos, e Isabella, de 4, que atualmente estão na Irlanda com o pai, o irlandês Trevor Maloney. Ela acusa o pai das crianças de abuso sexual, enquanto ele a acusa de sequestro internacional de menores.
Em entrevista exclusiva ao Correio da Manhã, Raquel contou que o Ministério Público Federal (MPF) elaborou um recurso especial que solicitava o retorno das crianças para o Brasil. O Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro (TRF-RJ), negou o pedido. Porém, por se tratar de um agravo, ainda cabe recursos. Ela contou que “quem vai ser responsável pela admissibilidade do recurso em terceira instância vai ser o STJ [Superior Tribunal de Justiça]”.
“Agora estamos aguardando esse processo subir. E é a esperança que eu tenho para que [o processo] seja visto e sejam analisados todos os fatos em relação à segurança das crianças”, ela disse.
Entenda o caso
Raquel conheceu Trevor Maloney em 2017, na Irlanda, onde eles se casaram e tiveram suas duas filhas. Tudo começou quando a brasileira começou a suspeitar que o então marido estava abusando sexualmente da filha mais velha. Ela disse que a suspeita começou “com gestos pequenos” que a deixavam desconfiada de comportamentos inadequados.
Mas o que marcou a brasileira aconteceu quando a filha mais velha tinha dois anos e a mais nova era recém-nascida. Trevor trabalhava como segurança em uma boate e chegava em casa de madrugada. Em uma noite, Raquel acordou com a filha mais velha chorando e foi ao quarto dela. “Quando eu abri a porta, ele estava tampando a boca da minha filha. Ela estava sentadinha no trocador, ele tampando a boca dela, ele estava só de cueca e com o pênis ereto. A minha filha estava muito assustada. Ela chorava de soluçar, um choro estrondoso”, relatou Raquel.
Ela disse que o questionou sobre o que aconteceu, mas ele deu dois relatos diferentes e começou a ficar nervoso com ela e preocupado para quem ela iria contar. “Na manhã seguinte eu fui trocar a fralda dela e ela estava toda empelotada na vagina. Bolinhas como se fosse de fricção de barba ou de alguma outra coisa e tinha um pelo masculino próximo da virilha dela. A minha filha nunca teve alergia a fralda, e não era marca de assadura”, narra Raquel.
Ela tentou denunciar o caso e pedir ajuda ainda na Irlanda, mas queixa foi arquivada pelo judiciário local. Raquel foi ao Brasil com as filhas e, quando Trevor descobriu as denúncias, ele ameaçou denunciá-la por sequestro internacional caso ela não voltasse para a Irlanda. Ela voltou e contou que ele tomou os documentos dela, o passaporte, o dinheiro e a mantinha em cárcere privado, sem chip de celular ou acesso a internet. “Ele começou a me ameaçar dizendo que eu era apenas uma imigrante, que as minhas filhas eram irlandesas e que um de nós dois seria preso e que essa pessoa não seria ele. Começou uma tortura psicológica gigantesca de ameaça de morte”, relatou a brasileira.
Com a ajuda de uma vizinha, Raquel conseguiu acionar a Embaixada do Brasil na Irlanda e a Polícia Federal. Depois de muitas tentativas, conseguiu voltar ao Brasil com as duas filhas. Em setembro de 2019, ela chegou ao Rio de Janeiro, onde morava com as filhas até o dia 14 de junho de 2023, quando o pai das crianças voltou com autorização da justiça para levar Júlia e Isabella de volta para a Irlanda.
Convenção de Haia
Assim que voltou para o Brasil, Raquel entrou na justiça para pedir a guarda das meninas. A juíza do caso aceitou o pedido em primeira instância. Porém, o pai das crianças acionou a Convenção de Haia para levar as meninas de volta para a Irlanda.
Ao Correio da Manhã, a advogada e Consultora de Jurídico da BMJ Consultores Associados, Raíssa Ornelas, explicou que a Convenção de Haia foi criada “a fim de determinar normas relativas à proteção da infância no plano internacional, especificamente quanto ao sequestro de menores”.
“O tratado tem como objetivo enviar a criança para o local em que residia antes da subtração, de forma rápida e desburocratizada. A Irlanda, assim como o Brasil, exige autorização dos genitores em viagens internacionais de crianças, sendo necessária a autorização do genitor que não estiver acompanhando o menor”, ela contou.
Na primeira instância, a Defensoria Pública da União (DPU) usou o artigo 13B da Convenção de Haia para dar guarda das crianças para a mãe. Esse artigo desobriga as autoridades do Estado à repatriação quando existir um “risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável", alegando as denúncias de abuso sexual.
A reportagem também conversou com a advogada especialista em Direito Internacional, Mariana Cofferri. Ela explicou que quando Raquel deixou a Irlanda, “ainda que numa tentativa de sobrevivência própria e das filhas diante dos abusos relatados, o ex-marido fundamentou-se do art. 3º, da Convenção, de transferência ilícita”.
“O Acordo prevê que os magistrados examinem apenas os aspectos da possível ilegalidade da transferência das crianças de seu país de origem. Sendo assim, realizou-se a análise estritamente com base nos aspectos da possível transferência ilícita. A decisão foi tomada e a ordem de regresso das crianças se deu e foi cumprida, independentemente do mérito da decisão que, posteriormente, determinou a guarda à mãe”, explicou a advogada.
Outro lado
O Correio da Manhã não consegiu contato com Trevor Maloney. Em entrevista concedida ao UOL, a defesa do irlandês afirma que “as acusações de abuso e violência são infundadas”. Os advogados ainda alegam que a filha mais velha dela passou por exame de corpo e delito e “nada apontou e não se constatou nenhum abuso" e com isso, Trevor "foi inocentado de todas as acusações falsas".
"Por conta das falsas denúncias feitas por Raquel, o nosso cliente sofreu uma série de investigações na Irlanda, teve a vida devassada, e absolutamente nada foi comprovado”, declarou a defesa. Em entrevista ao G1, a defesa ainda enfatizou que a Justiça brasileira reconheceu que a Justiça irlandesa é a competente para julgar as questões de guarda das meninas entre os pais e, portanto, elas serão tratadas na Irlanda pelo advogado do pai das crianças.