Por: Eduardo Cunha*

Caso Americanas mostra hipocrisia do mercado e seus agentes

Eu cresci, tendo a lembrança na minha adolescência da presença das Lojas Americanas, no meu bairro na Tijuca, Rio de janeiro, onde exatamente na Praça Saens Pena, a sua loja era um ponto não só da presença de um comércio vital para s necessidades de todos, com o até mesmo um point de escasso lazer que existia naquele momento.

Isso vão mais de 50 anos, onde nas Americanas tudo se encontrava, desde um item de armarinho, até um sorvete em casquinha para saciar o calor.

Até mesmo a concorrência era quase inexistente, salvo pela presença depois de um imitador, mas sem o mesmo charme, das chamadas Lojas Brasileiras, cujo nome era o principal contraponto, visando explorar o nacionalismo, para obter a preferência dos consumidores, mas diferente das Americanas, não conseguindo atingir o coração e tampouco o bolso dos consumidores.

Com o tempo, os hábitos de consumo foram mudando, surgiram várias formas de atendimento aos consumidores em concorrência ao modelo das Americanas, mas ela após troca de acionistas, adaptação a realidade presente, investimentos, incorporação de outros negócios, como a compra da rede Blockbuster e mais recentemente do Hortifrutti, tornou se uma corporação, das maiores do nosso país.

Além disso soube se adaptar ao e-commerce, enfrentando a concorrência que poderia predar o seu negócio.

O seu Patrimônio Líquido estava em R$ 14,7 bilhões, no momento que estourou a sua crise, com 48 mil empregos diretos, fora os indiretos, se tornando uma das mais relevantes empresas do nosso país.

Como foi a quebra

É claro que o capitalismo é implacável em todo mundo e não existirá espaço vazio em mercado, da mesma forma que não existe espaço vazio em nenhum segmento da vida, inclusive a política. Sempre aparecerá alguém para ocupar esse lugar.

Se existe uma empresa como as Americanas, vendendo o que vendia, é porque existe quem compre e que vai continuar comprando seja nas Americanas, seja em outro lugar.

Logo se as Americanas quebrarem, os seus consumidores continuarão comprando a mesma coisa em outros lugares, que vão no tempo absorverem o tamanho do contingente da sua mão de obra, não necessariamente a mesma, que poderá perder os seus empregos, pela situação da sua possível quebradeira.

Se não fosse assim, quantas companhias que quebraram no mundo e seus empregos não acabaram absorvidos por outros, que ocuparam os seus lugares?

Mas o que aconteceu que quebrou um negócio quase secular da nossa economia?

A resposta é a malandragem, a vaidade e a hipocrisia dos nossos agentes de mercado, se forem verdadeiras as razões divulgadas na mídia para as " inconsistências contábeis " de cerca de R$ 20 bilhões.

Se as razões verdadeiras não forem as divulgadas, nada do que escrevi adiante será correto, ficando desde já registrado o meu pedido de desculpas, mas só posso opinar pelo conhecido publicamente.

Quais foram as tais "inconsistências contábeis ", segundo o divulgado?

Tratavam- se simplesmente de uma coisa que se denominou de risco sacado, a tal malandragem. O que seria isso?

Seria a contabilização de despesas de juros de financiamento de fornecedores, como se fossem o custo dos próprios fornecedores.

Qual o problema disso? Leva a algum rombo? Óbvio que não causou qualquer rombo, não tem qualquer dívida não contabilizada e nem despesa omitida que levasse a desvirtuar o resultado e gerar qualquer rombo e tampouco disfarçar o resultado de lucros e por consequência a distribuição de dividendos a mais por causa disso.

Por que estou falando isso? Simplesmente porque a despesa não foi escondida, apenas classificada no passivo como despesa com fornecedores e não com os bancos que financiavam os fornecedores, para que eles recebessem dos bancos a vista.

Tratava-se na verdade, de mera antecipação pelos fornecedores das suas vendas, para as Americanas, com a despesa desses juros arcada pelos próprios fornecedores e certamente embutidas no custo de venda desses fornecedores para as Americanas.

Qual o erro que acarretava essa prática? Simplesmente causava uma visão equivocada no Balanço das Americanas da sua alavancagem financeira, através de menor número de registro de passivo com bancos, desses financiamentos disfarçados através dos fornecedores.

Mas isso está longe de acarretar qualquer rombo, ou dívida não reconhecida no Balanço. Apenas a classificação contábil era incorreta, pois ao invés de estar em passivo financeiro, estava em passivo circulante com fornecedores.

Que consequência tem esse erro? Tem simplesmente o condão de disfarçar o endividamento financeiro, para não permitir em alguns casos, tornar vencível antecipadamente empréstimos e financiamentos, em função do seu montante total atingir um valor sobre o patrimônio líquido das Americanas, cuja fotografia poderia demandar mais garantias por parte dos bancos, ou demandar uma taxa de juros maior, que aí sim teria impacto na operação da empresa, pois aumentaria as dificuldades e o custo de refinanciamentos da sua dívida.

Hipocrisia dos bancos

Só que tem um pequeno detalhe nessa história, pois grande parte dos fornecedores das Americanas, que usavam esse risco sacado, são também grandes corporações, que contabilizaram com certeza esse financiamento de fornecedores, como financiamentos deles, contabilizando também a despesa dos juros e os seus respectivos pagamentos.

Os fornecedores recebiam dos bancos, na hora da venda, o total das suas respectivas faturas, deduzidas dos juros cobrados pelos bancos, que ficavam com o direito a receber das Americanas, quando esta estivesse quitando essas faturas dos fornecedores.

É uma operação de mera antecipação de recebíveis pelos fornecedores, que certamente os bancos que assim procediam, avaliavam não só o risco dos fornecedores, bem como o risco da própria Americanas.

Ou alguém acha que se por acaso as Americanas não pagassem as faturas dos fornecedores, os bancos não iriam debitar esses valores na conta corrente dos próprios fornecedores?

Alguém acha que fornecedores como a Nestle, a Coca Cola, a Ambev, Sansung, dentre vários outros do mesmo quilate, dependiam da Americanas para descontarem os seus recebíveis?

Por acaso também a maior parte dos bancos que faziam essa antecipação dos recebíveis, não eram os mesmos bancos que financiavam as Americanas?

Por que esses bancos não contestaram essa situação quando concediam essa antecipação de recebíveis das Americanas? Pura hipocrisia ou má fé, reclamarem agora, que as Americanas estavam com as inconsistências contábeis.

A vaidade

Onde entra a vaidade? Do ex futuro CEO que deveria ter assumido a empresa e resolveu fazer uma delação não premiada ou não punida, resolvendo tirar qualquer credibilidade da empresa, alegando que não assumiria devido a essas inconsistências contábeis.

Ora esse ex futuro CEO, simplesmente era o presidente do Conselho de Administração de um dos maiores bancos do país, o Santander, que é o segundo maior credor das Americanas e provavelmente financiador da antecipação de recebíveis dos fornecedores da própria Americanas.

Com certeza os créditos que o Santander e os demais bancos tem lastreados nos fornecedores, eles irão receber de qualquer forma, mas os créditos contra as Americanas, eles certamente vão perder uma grande parte, devido a Recuperação Judicial.

É simplesmente impossível, que ele não conhecesse essa situação quando aceitou ser o novo CEO da empresa.

Se não sabia é pior, porque é incompetente por não saber.

Se sabia, por que aceitou ser o CEO para destruir a empresa antes mesmo de assumir?

Ele está demonstrando que que era um péssimo gestor do banco e por consequência seria também um péssimo gestor das Americanas.

Por que não contestou pelo banco que presidia as tais inconsistências contábeis?

A sua vaidade quis destruir a empresa, que se não fosse delatada por ele, ele poderia simplesmente assumir o cargo, determinar a correta contabilização das novas contas dos fornecedores, colocando como despesas financeiras essa antecipação de recebíveis.

Ele poderia também determinar um ajuste no Balanço de 2022, ainda não fechado, visando registrar corretamente esses financiamentos indiretos que ocorreram.

Por que não tem rombo algum de R$ 20 bilhões? Porque os fornecedores financiam um prazo não muito longo, que deve ser de 30 dias até o máximo de 90 dias, operações que são renovadas a cada novo fornecimento.

Bastava as novas compras serem contabilizadas corretamente, que em 90 dias tudo estaria contabilizado de forma correta, não precisando esse escândalo todo.

Além disso, é só verificarmos as demonstrações financeiras divulgadas referentes ao terceiro trimestre de 2022 ( link ), onde o passivo total com fornecedores estava em cerca de R$ 5 bilhões, bem longe dos R$ 20 bilhões alardeados.

O montante de passivo com fornecedores, era de cerca de 30% do montante de empréstimos e financiamentos registrados.

Se o passivo total com fornecedores era nesse montante, como poderiam alardear um número quatro vezes maior de inconsistências?

Para piorar, ainda cometeram a burrice de irem buscar e obterem na Justiça uma tutela antecipada, visando a não pagarem nada, inclusive com estorno de pagamentos a bancos já debitados na conta corrente das Americanas.

Ou seja, minaram a confiança na empresa e desencadearam uma briga judicial que não teria outro desfecho, que não seja a quebra da empresa ou no mínimo uma recuperação judicial, já pedida e obtida na Justiça, com perdas para todos, incluindo os próprios bancos, fornecedores, investidores, acionistas, trabalhadores e principalmente para a própria empresa que vai perder mercado, mesmo que consiga sobreviver.

Só quem ganhou com isso foram os concorrentes das Americanas, que certamente vão ganhar market share, sem precisarem investir qualquer coisa, além das bancas de advocacia, algumas com forte influência no Judiciário do Rio de Janeiro, cuja competência para conduzir a Recuperação Judicial está sendo já contestada.

Conflito de interesses

Eu comecei a minha vida profissional, como quase um aprendiz em uma empresa de auditoria de renome mundial à época, a Arthur Andersen, que foi a derrocada, muito tempo depois que eu lá trabalhei, pelo famoso escândalo da Enrom nos Estados Unidos, companhia de energia americana que empregava menos da metade do que as Americanas empregam, que fraudou balanços contábeis, escondendo dívidas e inflado artificialmente os seus lucros.

As Americanas possuem os seus balanços auditados por empresa de renome mundial, maior até que a Arthur Andersen tinha na época.

Nada vai acontecer com ela, se efetivamente ela deu parecer sobre um balanço maquiado?

Nos Estados Unidos ela não sobreviveria se participasse de algo parecido e certamente não sobreviverá por lá, depois desse episódio.

Em sua defesa, ela pode ter feito exames com cartas de circularização, método usual de auditoria, para confirmar as transações, onde o auditor solicita por escrito, o montante das transações existentes com os bancos e fornecedores, visando a confirmar o passivo escriturado.

Se os bancos que financiavam as Americanas e ao mesmo tempo os fornecedores, não confirmavam essas operações de risco sacado, assim como os fornecedores confirmavam os montantes que estavam na contabilidade das Americanas, dificilmente se poderá responsabilizar a empresa de auditoria, pois a hipocrisia do sistema atuava para fingir que não existiam as tais inconsistências contábeis.

É claro que deve ter tido banco que estava financiando somente as Americanas, como o BTG, que vai sofrer mais perdas do que o banco do ex futuro CEO.

Eu duvido que uma empresa do porte dessa auditoria não tenha feito isso. Certamente vai aparecer isso durante o processo de recuperação judicial, ou de possível investigação seja da CVM ou de qualquer lugar.

Eu duvido também que o banco que era presidido pelo ex futuro CEO, não tenha sido demandado a confirmar pela auditoria os montantes das suas operações.

E aí como fica essa situação? Como pode vir a público o presidente do conselho desse banco, no caso o ex futuro CEO, delatar a operação que o seu banco, deve ter confirmado por escrito os números do balanço?

Será que já não existia um clássico conflito de interesses desse ex futuro CEO, ao presidir simultaneamente o banco e a empresa que o seu banco era o segundo maior credor?

Pasmem, o próprio banco dele entrou contestando a Recuperação Judicial, alegando fraude em um balanço, cujos dados eles podem ter confirmado por escrito.

E o mais hilário disso tudo, é que o ex futuro CEO acabou provocando uma perda no banco que ele presidia o seu conselho.

O que fica

Os próprios acionistas de referência das Americanas, de grande projeção internacional, vieram a público e alegaram desconhecerem essa prática contábil.

Ter brasileiros de sucesso, que conseguem serem investidores no exterior, sem usarem qualquer dinheiro público, como por exemplo os meliantes da JBS se utilizaram, as vezes parece que incomoda muito.

E esses acionistas não estão perdendo dinheiro também? Não seria mais fácil se eles soubessem disso e fossem coniventes, terem vendido as suas posições em mercado, antes da delação do ex futuro CEO?

De qualquer forma, a suposta responsabilidade que eles possam ter, deve ser apurada e se existirem, deve ser cobrada por quem teve prejuízos.

Se existiram fraudes com o conhecimento e a conivência deles, a Recuperação Judicial deve ser contestada, sendo buscada toda e qualquer responsabilidade dessas fraudes, seja por quem for o responsável.

Será inclusive uma grande oportunidade, de se discutir a desconsideração da personalidade jurídica em uma Recuperação Judicial.

A própria quebra de sigilo dos e-mails corporativos, determinada pela Justiça, poderá esclarecer bem quem sabia ou não dessa situação.

No mais o que fica é que as malandragens das Americanas, a vaidade do ex futuro CEO e a hipocrisia de parte dos bancos credores, levarão a que muitos trabalhadores percam os seus empregos, mesmo que depois as suas vagas acabem sendo absorvidas por outros.

Afinal desde que eu tomava casquinha de sorvete nas Americanas, muitas sorveterias surgiram, com sorvetes até melhores, assim como vão surgir substitutos de vários segmentos de vendas das Americanas, que aliás já possuem grandes concorrentes rindo de orelha a orelha.

Esse ex futuro CEO, se acha a bala que matou o Kennedy, mas é apenas um estilete de trombadinha, que fez jorrar sangue para tudo quanto é lado, inclusive na casa dele.

*Economista e ex-deputado federal. Artigo publicado

no portal Poder360