Sem dogmas na invenção de Vinterberg

Ganhador do Oscar por 'Druk', o diretor de 'Festa da Família' aposta na TV, com minissérie sobre a crise climática na Escandinávia

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Families Like Ours' aborda as sequelas da crise ecológica do aquecimento global

À espera dos direitos autorais conexos à refilmagem de "Druk - Mais Uma Rodada" (2020) para a República Tcheca (chamada "Pod Parou" e dirigida por Rudolf Biermann), o dinamarquês Thomas Vinterberg hoje negocia sua nova empreitada, a minissérie "Families Like Ours", com canais e streamings da Europa e fora dela. Havia um outro remake de sua dolorosa comédia dramática etílica para Hollywood, com Leonardo DiCaprio envolvido na produção, mas ainda não há datas confirmadas para sua estreia. Neste momento, a teledramaturgia orienta o foco criativo do realizador escandinavo, nascido em Frederiksberg, na Dinamarca, há 55 anos.

"Cada um sabe do seu limite e da sua zona de transbordamento, mas a vida familiar está no eixo de nossos engasgos sempre", disse o diretor ao Correio da Manhã, em passagem pelo Festival de San Sebastián, na Espanha.

A ala do evento espanhol dedicada a negociações do mercado exibidor e distribuidor serviu de plataforma para a divulgação de "Families Like Ours", projetada em sessão de fala no Festival de Veneza, em setembro. Veiculado na Escandinávia pela emissora TV 2, em outubro, essa produção assume tintas ecológicas. O enredo assume um tom de thriller. Devido ao aumento do nível do mar, a Dinamarca precisa evacuar parte de sua população. Nesse processo, Laura (Amaryllis August) precisa aprender novas formas de convívio com seus parentes. É um tema que Vinterberg aborda com frequência.

Cerca de uma década depois da consagração de seu "Festa de Família" (1998) com o Prêmio do Júri do Festival de Cannes, estreou no Brasil "O Funeral", uma peça teatral escrita pelo diretor (e estrelada por Bruce Gomlevsky), que dava continuidade à trama que fez sua fama nas telas. Naquela altura não se falava mais em Dogman 95, movimento escandinavo que o cineasta idealizou com Lars von Trier, Søren Kragh-Jacobsen e Kristian Levring a fim de reciclar os códigos do realismo no audiovisual e libertá-lo de dispositivo ilusórios. "Families Like Ours", seu novo experimento dramatúrgico, preserva em sua estrutura serializada o instinto de recusa a artificialismos que cansaram aquela geração de talentos no fim do século XX. Há, entretanto, cautela para que estratagemas dialéticos do passado, tal qual aqueles usados pelo cineasta em títulos como "Querido Wendy" (2005) e "Submarino" (2010), não se tornem um garrote.

"Lançamos mão do termo Dogma de forma irônica, para atacar os cacoetes de um cinema em vias de cansaço, portanto, não há como incorrer o risco de transformar o que nasceu para ser libertário numa corrente que limita nossa imaginação e gera clichês. Não precisamos de um Dogma que se cristalize como lei, como postulado. Há que se quebrar o gesso na arte", disse Vinterberg ao Correio, enquanto comemorava o sucesso mundial de "Druk - Mais Uma Rodada", pelo qual conquistou o Oscar de Melhor Filme Internacional, em 2021.

O longa hoje está na Netflix. Naquele ano de sua consagração nos EUA, Vinterberg foi indicado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood à estatueta de Melhor Direção, o que ampliou o prestígio de uma carreira iniciada em 1990. A produção de US$ 5,7 milhões reafirmou a potência na parceria entre o cineasta e o ator Mads Mikkelsen, colegas no aclamado "A Caça", um dos achados da Croisette em 2012. Sem o apoio de Mads, a história de um frustrado professor de História que se reinventa após se submeter a um experimento etílico jamais teria sido filmada. Uma tragédia pessoal do realizador quase brecou esse sucesso da Dinamarca nos écrans.

Em 2019, a filha dele, Ida, morreu, aos 19 anos, em um desastre rodoviário, num acidente cometido por um motorista que dirigia falando ao celular. A rodagem de "Druk" (chamado "Another Round" mundialmente) estava no início. Apesar do luto, Vinterberg acreditou que precisava seguir filmando e dedicar o projeto à jovem, num tributo póstumo. O resultado: comoção das plateias por onde a película passou.

Vem sendo assim o percurso de Vinterberg pelo cinema, a julgar pela comovente projeção da dramédia "A Comunidade" na Berlinale de 2016. Dele nascem narrativas confessionais que sempre flagram o desamparo.