Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Em busca do punk perdido... na TV aberta

Em atuação vocal primorosa, Milhem Cortaz empresta a voz ao antissocial Bob Cuspe | Foto: Divulgação

Solidão é uma palavra que serve de bússola a "Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente", o longa-metragem que ajudou a consolidar a força da animação brasileira no exterior. Sua rojeção na TV Brasil, nesta quinta-feira, às 21h30 (com repeteco às 3h30 de sexta), é precedida pelo sucesso que o filme alcançou na Europa, em sua projeção na mais prestigiosa maratona de animação do mundo, o Festival de Annecy.

Saiu de lá coroada com o Prêmio Contrechamp. O ator Milhem Cortaz tem uma atuação antológica como a voz do Sid Vicious da periferia de São Paulo. Bob foi consagrado na revista "Chiclete com Banana", que circulou de 1985 a 1990, chegando a imprimir 110 mil exemplares. O almanaque foi um marco do gibi nacional.

Sua trama fala do sentimento de desamparo dos que acreditaram no punk como expressão de rebeldia capaz de conter a náusea da utopia falida dos anos 1980. É o desamparo dos que vivem numa metrópole onde cabe de tudo, só se agigantando em suas contradições.

É o desamparo dos que criam na medida do risco, como é o caso de Arnaldo Angeli Filho, cartunista que é, a um só tempo, protagonista e arena de uma narrativa animado em stop motion, técnica na qual objetos são filmados quadro a quadro, dando uma sensação de movimento. Narrativa que se passa, parcialmente, na cabeça dele.

Mesclado documentário e fabulação, com uma faísca de sinestesia antes só testada pelo curta glauberiano "Jorjamado no Cinema" (1977), o longa é um liquidificador de referências pop. A direção é de Cesar Cabral.

O cineasta de Santo André esteve em Sundance, em 2011, com o premiado curta-metragem "Tempestade" e colecionou láureas (como o troféu Coral, do Festival de Havana, e dois Kikitos de Gramado) por "Dossiê Rê Bordosa", também baseado no universo de Angeli.

Realizado há seis décadas na França, Annecy encontrou em "Bob Cuspe - Nós Não Gostamos De Gente" uma inusitada mescla de documentário e distopia, num cruzamento de "Mad Max" com "Tapa na Pantera", meio "Repo Man", meio "Mais Estranho Que a Ficção".

Em sua porção não ficcional, encontramos um .doc talking head, de muita falação, no qual o próprio Angeli, caracterizado em forma de boneco, fala de processos diversos. Ele desabada sobre o ator de criar, de viver, de se reinventar, de usar óculos escuros e de tornar isso tudo uma coisa só.

Do outro, num registro distópico, vemos o que se passa na cabeça do artista gráfico quando ele parece querer se livrar de suas crias do passado, transformando num deserto árido o que era uma São Paulo quadrinizada - e universalíssima. É uma trama sobre desapego e sobre uma perseverança quase romântica, que encontra equilíbrio na montagem de Eva Randolph.

Ao confessar não ter problemas em matar personagens, uns minutos antes de afirmar não ter problema em jogar bens materiais fora, Angeli - o cronista existencial por trás de tirinhas de HQ que amadureceram o humor nas Américas - instiga no espectador uma sensação de que a facilidade dele em se libertar de amarras pode ser um sintoma do modo como a gente vem lidando com as falências morais de nosso próprio país.

Talvez por isso, a presença de um depoimento da cartunista Laerte, que avalia esse desapegar de Angeli como um sinal de maturidade, complexifique juízos rápidos que um filme tão catártico pode gerar. E isso acontece pelo fato de uma estrutura de narrar tão metalinguística se colocar em dúvida e se problematizar todo o tempo, num gesto corajoso de seu diretor.

A dúvida maior se expressa na voz os Irmãos Kowalski (saída do gogó de Paulo Miklos), ao perguntar (o tempo todo) se o tal Bob Cuspe é o escolhido… ou seja, um herói. E o modo como Miklos expressa perplexidade é o melhor: "Ele não cospe mais!".

Atualmente, a TV Brasil é uma das maiores vitrines de filmes nacionais na TV aberta. No sábado, às 13h30, tem "Família Craft e o Código da 20" (2021), de Henrique Freitas, e, às 22h, rola "De Você Fiz Meu Samba", de Isabel Nascimento e Silva.