Por: Cláudia Chaves | Especial para o Correio da Manhã

Inquietudes do santo filósofo

A atuação de Eduardo Rieche é comovente na medida que o recorte das palavras de Santo Agostinho transcendem as limitações de um monólogo | Foto: Renato Mangolin/Divulgação

"Inquieto Coração - 15 anos" comemora a data com apresentação, pela primeira vez, na Barra da Tijuca. São apenas quatro apresentações na Sala Eletroacústica da Cidade das Artes. Com direção de Henrique Tavares e texto e atuação de Eduardo Rieche, a montagem joga luz sobre o lado humano de Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C) e todas as questões que moveram seu inquieto coração na direção do autoconhecimento e do conhecimento do mundo intangível da espiritualidade

A atuação de Eduardo Rieche é comovente na medida que o recorte feito das palavras de Santo Agostinho leva o espetáculo além das limitações de um monólogo. Ao mesmo tempo que a plateia se comove, a reflexão do santo/filósofo faz com que as questões levantadas se transformem em um diálogo com o nosso próprio pensamento.

"Chamou-me a atenção o fato de que alguém que viveu nos séculos IV e V - isto é, muito antes das noções de pessoa, sujeito e personalidade serem "inventados" - já havia escrito uma "autobiografia" (o clássico 'Confissões'). Era o 'eu' ganhando um espaço literário pela primeira vez na história. E havia um método para essa introspecção e esse autoexame psíquico", destaca Eduardo Rieche.

A adaptação foi feita com base nas edições brasileiras de "Confissões" e "Solilóquios"; na edição espanhola de "A Cidade de Deus" e na edição portuguesa de "A Trindade". Foram utilizadas, também, algumas cartas e sermões de Santo Agostinho.

"A vida é uma passagem do infinito de onde saímos para o infinito aonde vamos. E, desde que entramos neste corpo mortal, a morte nunca mais deixou de estar a vir. Não há ninguém que não esteja mais perto dela no fim do ano do que estava antes,

e amanhã mais do que hoje, e hoje mais do que ontem, e nesse instante mais do que agora há pouco, pois o tempo que se vive é vida que se corta, e cada dia que passa é menos vida que nos fica. O tempo da nossa vida é caminho para a morte, onde não está previsto nenhum segundo de atraso. Por isto, o homem nunca está propriamente em vida: é mais um morto do que um vivo - já que não pode estar simultaneamente morto e vivo", afirma Santo Agostinho em trecho da segunda cena de "Inqueito Coração".

Um dos méritos do espetáculo é transcender o viés religioso e dogmático do santo/filósofo em algo que trata da essência humana, o que é feito com profundidade. "A obra de Santo Agostinho é vasta e plural. O adjetivo 'inquieto' do título diz respeito ao próprio desassossego da alma agostiniana, e sua incessante busca por respostas as mais diversas. Respostas que nós buscamos até hoje!", observa o ator.

"Ao mergulhar em sua própria vida psíquica, ele acabou tocando em temas universais que, curiosamente, têm muitos pontos de convergência com vários autores e pensadores modernos. Vários de seus questionamentos seriam revisitados e/ou aprofundados muito tempo depois - na filosofia, por Descartes e Kierkegaard; na psicanálise, por Freud; e, na literatura, por Proust e Joyce, por exemplo", acrescenta.

Este eixo de "modernidade" foi, aliás, o que guiou Eduardo nesta adaptação. "Procurei extrair das obras de Santo Agostinho aquilo que me parecia mais relevante para o homem contemporâneo, e, naturalmente, que pudesse despertar um interesse cênico. Há uma impressionante atualidade ali - e o resultado é que há quem pense que seus textos foram escritos nos dias atuais. Acredito que o que continua nos aproximando de Santo Agostinho é a aventura do pensamento e a alegria do conhecimento - que, no caso dele, passa também pelo coração. Na filosofia agostiniana, viver é inseparável do sentir", comenta o ator.

Eduardo nos conta que seu próximo projeto será uma montagem do texto "Os fuzis da Sra. Carrar", de Bertolt Brecht, com direção de Victor García Peralta. O espetáculo deve estrear no primeiro semestre de 2025, no CCBB-RJ.

SERVIÇO

INQUIETO CORAÇÃO - 15 ANOS

Sala Eletroacústica - Cidade das Artes (Av. das Américas, 5.300, Barra da Tijuca)

Até 25/8, aos sábados (20h) e domingos (19h) Ingressos: R$ 60 e R$30 (meia)