Caberá a neutros hermanos argentinos e uruguaios inaugurar o 73° Festival de San Sebastián, na sexta (dia 19), com "27 Noches", dirigido pelo ator Daniel Hendler, mas já na arrancada, o evento espanhol sedia a entrega do Grand Prix Fipresci para "Ainda Estou Aqui", do carioca Walter Salles, e, no sábado, projeta "O Agente Secreto", do pernambucano Kleber Mendonça Filho. A produção egressa do Recife entra no páreo pela láurea de júri popular da mostra Perlak ao mesmo tempo em que um longa-metragem com CEP em São Paulo, "Dolores", rodado por Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes, concorre na mostra Horizontes Latinos. Em sua disputa oficial, construída em torno da caça ao troféu Concha de Ouro, a maratona cinéfila basca (uma das mais respeitadas e concorridas do mundo) só coroou o Brasil uma vez... e só em 2019. O vencedor, "Pacificado", rodado no Morro dos Prazeres, no RJ, hoje impõe sua excelência na grade da Disney . Paxton Winters, um americano que se radicou em Santa Teresa, é o diretor.
De maneira orgânica, quase casual, a câmera da diretora de fotografia Laura Merians sempre fita olhares em "Pacificado", desde os planos iniciais do Morro dos Prazeres, sempre medindo a investigação geopolítica de Paxton. Seu obturador abre e fecha à luz das periferias cariocas como se buscasse mesurar a dimensão trágica do Rio de 2016 - data que se sobressai na narrativa por indícios espaciais. À frente de suas lentes, aparece o desmanche da estrutura montada para os Jogos Olímpicos. O primeiro olhar que grita em cena é o de Léa Garcia, como Dona Preta, ou só Vó, a fiel Vó de Jaca, apelido do protagonista, uma espécie de samurai da favela, um ex-líder do tráfico, "bicho solto", de quem só sobrou uma sombra, qual o "Kagemusha", que rendeu a Palma de Ouro a Akira Kurosawa. Dona Preta é também bisa de Tati, personagem de Cássia Gil, menina que desenha essa história emotiva de reeducação dos quereres. Jaca rendeu a láurea de Melhor Ator a Bukassa Kabengele e Laura ainda papou um troféu por seu arranjo fotográfico. Passaram-se seis anos dessa consagração e, hoje, esse filmaço - que teve o diretor americano Darren Aronofsky, de "A Baleia", entre seus produtores - pode ser visto na plataforma digital da Disney. É uma pedida e tanto para quem quer curtir longas com o Brasil em seu DNA nos streamings.
A câmera de Paxton flagra o olhar de maré branda de Tati, que logo se faz molhar… marejando sonhos despedaçados por toda a sorte de demanda e de agressões de sua mãe, Andréa (Débora Nascimento, em um desempenho avassalador). Esta também esbugalha a pólvora que reside em sua retina… retinas dilatadas por carreiras e mais carreiras de pó e pela esperança vã de ter um lote de terra à sua espera em São Paulo. Andréa é um corpo que definha… corpo desejado por muitos personagens, mas que, já nos momentos iniciais do filme, revela um terçol digno de Capitu… na ressaca de um determinismo que Winters estuda quadro após quadro. Esse organismo que entra em entropia em cena dimensiona a grandeza de sua intérprete.
O que vemos em "Pacificado" é o processo de redesenho da família de Tati depois que Jaca, o pai com quem nunca conviveu sai do cárcere disposto a mudar de vida. Mudanças custam caro para os trabalhadores do pó no RJ, mas o preço a se pagar pela reinvenção justifica todo e qualquer calvário. É o que acompanhamos neste thriller caudaloso, que é um hino de amor aos Prazeres, cujos moradores delinearam a trama para Paxton.
Há muitos potenciais candidatos ao Oscar nas mostras de San Sebastián deste ano, mas, entre os atuais concorrentes à Concha de Ouro, o mais esperado é "Le Cri des Gardes", de Claire Denis. Nele, a diretora faz uma adaptação de um romance de Bernard-Marie Koltès: "Combat De Nègre Et De Chiens". O filme se passa nos barracões de uma obra na África Ocidental e é protagonizado por Isaach de Bankolé, Matt Dillon, Mia McKenna-Bruce e Tom Blyth. Num canteiro de operários, Horn, o chefe da obra (vivido por Dillon), e Cal, um jovem engenheiro (Blyth), dividem o alojamento atrás da porta dupla das instalações. Leone, a nova esposa de Horn (Mia), chega para se juntar a eles na noite em que um homem (interpretado por Isaach) aparece junto à cerca. Seu nome é Alboury. Como um espectro na escuridão, ele exige o corpo de seu irmão, que morreu naquele mesmo dia na obra. Ele vai assombrar os dois homens durante toda a noite até que lhe entreguem o cadáver, enquanto Leone observa o desastre crescer diante de seus olhos. É uma promessa de vitórias no festival onde Claire foi presidente do júri em 2023 e onde ganhou o Prêmio da Crítica, em 2018, com "High Life".