Geometria da discriminação: 'M8' leva à Netflix uma crítica feroz à microfísica do racismo

Nas raias da tensão, com um pé no fantástico, pelas vias da ancestralidade, longa de Jefferson De é mensageiro de vozes que clamam contra a intolerância

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Mariana Nunes é a enfermeira Cida, que ajuda Maurício (Juan Paiva) a lidar com os fantasmas do racismo em 'M8'

 

Rezam as mitologias associadas ao ioruba que "Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só arremessou hoje", por ser uma esfera que gira e nunca para. Nessa lógica, ou melhor, nessa mística, "M8 - Quando a morte socorre a vida", de Jeferson De, hoje com destaque na Netflix, é um "filme exu", não apenas por congregar em sua narrativa a onipresença de uma luta secular - a do respeito às populações negras -, mas por servir de mensageiro a muitas vozes que clamam pelo fim da intolerância. O streaming agora lhe assegura o destaque justo.

É uma narrativa mensageira que saiu do Festival do Rio 2019 laureada duplamente (menção honrosa e com o prêmio do júri popular), numa dupla vitória que coroa seu elenco em estado de graça, com Mariana Nunes em seu apogeu. Não é um longa-metragem de digestão fácil - assim como nosso país -, o que faz dele uma experiência de ruminação... algo a ser absorvido aos poucos, pra doer, em sua percepção das microfísicas do racismo numa terra onde um estudante de Medicina é sempre discriminado por sua cor. Há ainda muitas camadas na cartografia de exclusão empreendida por seu realizador: fala-se da comunidade queer, de desequilíbrio de classes, da miopia das instituições de ensino em relação aos desajustes de classes, de solidões que se aguardam. Cida, personagem de Mariana, enfermeira que criou o filho sozinha, é quem vem expor o fardo de mulheres solitárias que, na maternidade, reinventam-se como guerreiras.

Num domínio pleno da direção, Jeferson transborda sua autoralidade, que vem lá de "Bróder" (2010), não só pela menção a grandes ícones das lutas raciais (a doce menção à escritora Conceição Evaristo é um dos sinais), como por sua habilidade de investigar vários vértices da geometria do Real, sempre do ângulo do desdém e do abandono político, indo e voltando às mesmas situações de modo a expor podridões institucionalizadas.

Baseada em um romance de Salomão Polakiewicz, a trama parecia ser algo próximo de "Morto Não Fala" (2018), ou seja, um rapaz que transita entre cadáveres consegue se comunicar com um deles. Parecia ser um devir exu num prisma mítico, metafísico, mas o universo temático de Jeferson é físico e ferido demais pra isso. O caminho de Jeferson é outro, bem distante da trilha do dito ExtraOrdinário (termo da moda na crítica, ligado a manifestações de situações misteriosas) das narrativas de gênero. É um drama de exumação de escoriações sociológicas que perduram desde o crime da escravidão.

Analisamos as dissonâncias do Brasil, guiados por Jeferson, com foco nas transformações na rotina do estudante Maurício (Juan Paiva, de uma retidão invejável), que cursa Medicina na UFRJ. Em meio à dissecação de um corpo no Fundão, para estudar sua anatomia, ele, ligado a religiões de matriz africanas, sente que a alma do tal corpo está por ali. Essa é a sensação inicial. E, de fato, há algo de errado com essa alma, associada a um corpo (negro) batizado de M8 - quem dá vida a essa figura, que se manifesta como assombração, é o ótimo Raphael Logam, da série "Impuros".

A inquietação de Maurício não é com encostos e sim com a injustiça social que reduziu aquela pessoa a uma sigla, sem um enterro, sem mãe para reclamar sua pertença. Mais do que isso, incomoda o fato de todos os corpos para estudo serem corpos negros, enquanto ele é a única pessoa que se identifica como preto de sua classe... quiçá de toda a universidade. Segue-se aí uma jornada de múltiplas vias.

Muitos ventos sacodem sua jornada, mas há uma brisa que o acolhe: a brisa dos conselhos de Cida, Mãe Coragem que faz Mariana Nunes botar o cinema brasileiro no bolso. E ainda tem cena dela com uma lenda morta da cultura pop brasileira: Pietro Mário (1939-2020). Eternizado como o Capitão Furacão na TV, o ator e dublador (voz de Tony Soprano no Brasil) brilha no papel do médico rico que é patrão de Cida e tutor-padrinho de Maurício. Ele foi um brilho que a fotografia construída por Cristiano Conceição valoriza bem, sem nunca incorrer em excessos.