Depois que "Dias Perfeitos" ("Perfect Days") desfrutou do circuito carioca por seis meses a fio, consolidando-se como o título de maior longevidade em nossas telas este ano, a grife Wim Wenders volta a despertar o apetite de exibidores e das plataformas digitais pela obra do artesão alemão, hoje com 79 anos. Depois de uma recente homenagem, em São Paulo, no Kinoforum, o realizador torna a instigar a inquietude da cinefilia brasileira, agora no streaming, por conta da carreira online de um de seus filmes mais devastadores das últimas duas décadas: "Tudo Vai Ficar Bem" ("Every Thing Will Be Fine", 2015).
Quase dez anos depois de sua estreia, que se deu no Festival de Berlim, em meio à entrega do Urso de Ouro Honorário ao cineasta, esse exasperante longa-metragem ganha os holofotes da Apple TV, onde pode ser comprado ou alugado.
Há um perfume inusitado de frescor nas tintas folhetinescas com que Wenders tinge "Tudo Vai Ficar Bem", fazendo dele um ensaio sobre o luto. Sua beleza reside numa reflexão sobre estados melancólicos - e sobre culpa - que ganha um requinte plástico singular no cuidado digno de ourives que o diretor tem com detalhes do plano. Trata-se de uma narrativa onde a marca estética de WW se faz notar da profundidade das cenas às bordas dos quadros, potencializados pelo empenho de um ator hoje vítima da cultura do cancelamento: James Franco.
Desde "Tão Longe, Tão Perto" (1993) não se via - na ficção - um Wenders tão possante... e tocante... quanto o desse estudo sobre rotinas enlutadas. Sem ele não existiria a joia "Dias Perfeitos", indicada ao Oscar em março.
Numa atuação pontuada por silêncio e dor, Franco é Tomas Elden, autor best-seller, mimado pela indústria editorial, que perde o domínio sobre os parágrafos de si mesmo ao atropelar e matar uma criança, por acidente. O irmão do menino é a única testemunha do atropelamento, que se dá numa região nevada. As filmagens se deram em Québec, no Canadá.
A notícia dessa morte implode as emoções da mãe da vítima, Kate, construída por Charlotte como uma figura enigmática, a um só tempo destrutiva e resiliente. Por conta de um contato com ela, o impacto do acidente vai reverberar sobre a vida de Tomas por anos a fio, enquanto ele galga o sucesso literário e ergue novas conexões amorosas. Em paralelo, Kate estará a seu redor, numa relação indefinível, entre a atração e o repúdio, entre a acusação e a adoração.
É nessa bifurcação de sentimentos (e de sentidos) que a autoralidade de Wenders se faz valer, aproximando Tomas dos anjos existencialistas de "Asas do Desejo" (1987), do andarilho de (sua obra-prima) "Paris, Texas" (Palma de Ouro de 1984) ou do jornalista imerso no esplendor da infância de "Alice nas Cidades" (1974). Inclua nessa lista o limpador de privadas de "Dias Perfeitos". Todos esses sujeitos careciam de pertença, ou seja, da sensação (física e metafísica) de se sentir parte de algo, de ter um abrigo. Pertença é a questão central da filmografia deste contador de histórias que se bandeou para as veredas do documentário no galope dos anos 2000, sobretudo com "Buena Vista Social Club", ao perder a ressonância do aspecto rock'n'roll das narrativas ficcionais.
Em entrevistas diversas, em pontos variados de sua obra, Wenders disse ser parte de uma geração salva da depressão moral da História pelos acordes do rock. O cinema para ele tem a dimensão progressiva de um LP do Yes ou de um "Dark Side of the Moon", do Pink Floyd. Desconexões com o simbolismo do movimento musical roqueiro (retomado em "Dias Perfeitos") empurraram o diretor ao Real. Depois de toda a excelência visual de seu "Sal da Terra", que codirigiu com Juliano Salgado em 2014, Wenders viu sua sede de fabulação despertar mais uma vez. "Tudo Vai Ficar Bem" é uma prova disso, ainda que por gravite por uma trilha de fábula sem mágicas, pautada apenas pelo feitiço da cicatrização de mágoas.
Wenders filma em busca de gente desconectada frente a um mundo na qual elas são exceções às regras, como se viu em "Dias Perfeitos". O Tomas de "Tudo Vai Ficar Bem" é uma figura singular pela força de sua arte, pela veia literária, mas ele vai embarcar numa aventura para encontrar a transcendência além das palavras, conjugando o verbo "viver" na prosa da carne, do osso e do desastre. Ao acompanhar essa triste figura com sua câmera, Wenders nos dá um filme belíssimo, que mostra ser "para sempre" ao conquistar novos olhares agora na Apple TV.