Em meio às primeiras discussões sobre o Brexit, a separação da Inglaterra da União Europeia, a diretora britânica Sally Potter conseguiu o "sim" da nata do cinema europeu - sobretudo, de medalhões de seu país - para rodar um longa-metragem de verve irônica sobre os desgovernos do Reino Unido. O filme se chamou "A Festa" ("The Party"), ficou mais hilário do que ela jamais imaginou e acabou estreando em competição pelo Urso de Ouro da Berlnale, em 2017.
Sete anos depois de sua estreia, desparecido no horizonte, essa joia retorna pelas vias do streaming mais interessado em narrativas autorais: a MUBI. É o exercício de direção mais elogiado de uma diretora que cravou espaço para si, na Grã-Bretanha e fora dela, com "Orlando, a Mulher Imortal" (1992). Conhecida ainda por "The Tango Lesson" (1997) e "Ginger & Rosa" (2012), a cineasta optou por uma ofensiva política mais explícita, e até suicida.
"Esse roteiro fala da Inglaterra da histeria do Brexit, que opta por se afastar da União Europeia por um golpe retórico calcado na intolerância em relação às diferenças", disse Sally ao Correio da Manhã em recente entrevista na Berlinale, quando finalizou "Look At Me", seu trabalho mais recente.
"O que sempre preservou o processo civilizatório foi a mistura de culturas, seja em que parte do planeta. Vencido o medo inicial da barbárie, diante da vinda de estrangeiros, iniciava-se uma nova cultura, mista. Foi assim com os gregos, os romanos, os cristãos medievais. Mas hoje nós vemos Trump avançar. É um sinal de risco".
Pequenininha em termos de duração (são só 71 minutos, sendo cada um deles mais delicioso do que o outro), "A Festa" leva um humor singular ao www.mubi.com. Trata-se de uma comédia em preto e branco precisa em seus alvos políticos, ao mirar na hipocrisia dos ingleses... e de outros povos da Europa e das Américas.
Foi o filme mais ovacionado do Festival de Berlim de 2017, em parte por sua concisão, mas muito por sua habilidade de destilar fel sem perder a elegância. Não há uma frase sequer no roteiro, escrito pela própria cineasta, que não esbanje escárnio, sobretudo por sair da boca da nata do cinema europeu, começando com Timothy Spall (da franquia "Harry Potter"). A seu lado estão astros de distintas gerações e nacionalidades, vide o irlandês Cillian Murphy ("Dunkirk"), as britânicas Kristin Scott Thomas (de "O Paciente Inglês") e Emily Mortimer (do recente "A Livraria"), a americana Patricia Clarkson (de "Vicky Cristina Barcelona") e o mítico ator suíço Bruno Ganz, o anjo de "Asas do Desejo" (1987), morto em 2019. "Escolhi um grupo de intelectuais combativos para viver um teatro de decepções, capazes de revelar o quanto a esquerda se enfraqueceu na Inglaterra", disse Sally a este repórter na capital alemã, de onde seu filme saiu com o Guild Film Prize, dado pela imprensa germânica.
Além do tom sufocante do visual P&B, impresso pelo fotógrafo Aleksei Rodionov, toda as estratégias de direção buscada por Sally em "A Festa" alimentam um clima de claustrofobia. Ambientado em alguns cômodos de uma casa, a trama acompanha as confusões que se instauram durante uma ceia na casa da nova Ministra da Saúde do Reino Unido, Janet (Kristin) no momento em que seu marido, o fragilizado ex-professor Bill (Spall, em genial atuação), faz um par de revelações bombásticas aos convidados. Estão nessa festa: um casal de lésbicas (Cherry Jones e Mortimer); um investidor do mercado financeiro com o nariz inflamado de cocaína, Tom (Cillian); a melhor amiga de Janet, April (Patricia, cujos diálogos são os mais ferozes do filme) e seu namorado germânico, o espiritualista Gottfried, vivido por Ganz numa atuação hilariante.
"O maior trabalho desse filme foi a escalação das estrelas, pois eu passei um tempão atrás de uma trupe bem distinta entre si que pudesse dar seriedade ao riso", diz Sally. "Rir é a forma de espelhar a loucura. De forma estrutural, 'A Festa' é bem objetivo a começar da escolha do título: durante uma hora e onze minutos, tudo o que se vê no filme é uma celebração. Amigos, risos, música, comida. Mas a cada cômodo da casa em que filmamos - por duas semanas, tendo o elenco em peso, inteiro, por apenas dois dias -, os nossos sete convidados vão sendo empurrados por um corredor de tensão e de colisão. Hoje em dia, os filmes andam longos demais, e com pouco a dizer. Ser econômico é uma virtude quando se lida com dramaturgia".