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Poética animal

Aos 85 anos, Jerzy Skolimowski saiu laureado de Cannes e concorreu ao Oscar pela narrativa tocante de 'EO' | Foto: Unifrance

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Apesar da esnobada dada pelo Festival de Veneza a seu trabalho mais recente, a comédia "The Palace", que roteirizou para Roman Polanski, o polonês Jerzy Skolimowski renovou seu prestígio como realizador, aos 85 anos, graças à incansável carreira de seu mais recente experimento no posto de cineasta, "EO", recém-chegado aos streamings.

Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, em março, o longa-metragem acaba de entrar para a grade da MUBI. É uma das aquisições de maior visibilidade da plataforma dedicada a narrativas autorais. Skoimowski é um diretor autor que funde artes plásticas, cinema e um olhar áspero sobre a mesquinhez.

Filmes premiados, mas hoje esquecidos, como "Ataque em Alto-Mar" (1985), "Vivendo Cada Momento" (1982) e "Barreira" (1966) garantiram ao artista plástico, cineasta e (vez por outra) ator um lugar perene de destaque nos maiores festivais do mundo e mesmo a simpatia de Hollywood, onde emprestou seu carisma à polonesa a "Marte Ataca!" (1995) e "Os Vingadores" (2012). São 64 anos de carreira.

Sua obra é das mais festejadas da Polônia, terra de gigantes como Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski, Agnieszka Holland e o já citado Polanski, colega de juventude e parceiro no cult "Faca na Água", do qual foi dialoguista. Em seu currículo de glórias, "EO" é um ponto de reafirmação profissional. Trata-se deuma triste fábula de denúncia à violência contra os animais.

Numa combinação de um pleito militante bem defendido e de um vigor estético mesmerizante, essa sua narrativa de timbre fabular ganhou o Prêmio do Júri de Cannes e segue angariando fãs mundo afora.

"A última coisa que um artista deve fazer é ser chato. A penúltima, é se repetir, consciente de estar esgotado. A terceira é não pensar a força plástica do plano. A tela em branco onde nosso filme é projetado é igual a uma tela a se encher de tinta para ser exposta numa galeria. É um objeto que carece de nossa percepção de volume, de espaço, de fricção", disse Skolimowski ao Correio da Manhã quando atuou em "O Caravaggio Roubado" (2018) e iniciou "EO".

Seu título se pronuncia como uma onomatopeia, pois é uma referência sonora ao zurro que os asnos fazem (aquele "inhóóó inhóóó"), num motivo óbvio: seu protagonista é um burro, cujo calvário comove espectadores. Ganhador do Urso de Ouro da Berlinale, em 1967, com "Le Départ", Skolimowski visitou o Brasil 13 anos trás, por conta de uma retrospectiva de sua obra no Festival do Rio.

Na ocasião, ele contou à reportagem que não gostaria de ficar limitado às praias de Copacabana. "Um país só se desnuda em toda a sua verdade geopolítica na voz de sua periferia. Eu fico curioso com a imagem do subúrbio do Rio, pois a realidade de uma cidade fascinante como essa deve estar nas áreas não turísticas, onde é possível ver esse povo como ele é", disse, à época, o octogenário realizador, que integra a grade da plataforma MUBI com um de seus primeiros sucessos: "Sinais de Identificação: Nenhum", lançado no Festival de Pesaro, em 1965. "Se existe aquilo que chamam de 'humanismo', que nada mais é do que um misto de perplexidade com empatia, o meu é movido por figuras marginais, excluídas dos processos diários do sistema vigente. Um burro que é acossado pela brutalidade dos homens, sem piedade, é um ser marginal".

Festejado como um tratado de amor à natureza, "EO" mistura elementos quase fantásticos com realismo ao narrar as peripécias de um burrico que perde seu lar, num circo, e vaga Europa adentro, parando num campo de futebol e num templo religioso. A busca por sua tratadora o leva aos lugares mais exóticos. A narrativa abusa de um jogo de cores sinestésico, numa edição febril, que mistura naturalismo e delírio. É uma abordagem originalíssima para a luta em prol da defesa ecológica. "O que Jerzy buscava era dividir com o espectador a chance de compartilhar das angústias de um ser vivo considerado não racional, mas que expressa a vida em seu olhar, na penúria e no encanto", disse a roteirista e produtora do filme, Ewa Piaskowska (mulher de Skolimowsky), em entrevista ao Correio em Cannes. "Escrevi essa narrativa com ele sempre valorizando as peripécias das andanças do animal. Coube a Jerzy incluir seu olhar como pintor em experimentos visuais".

Parceiro de Eva no roteiro da comédia "The Palace", o novo Polanski que Veneza rechaçou, Skolimowski passou quase 20 anos, entre 1988 e 2008, sendo lembrado mais como pintor do que como realizador, até ser resgatado por Cannes, há 15 anos com a projeção do estonteante "Quatro Noites Com Anna", na Quinzena dos Realizadores. Dois anos depois, recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza por "Matança Essencial", dado por Quentin Tarantino, que enxerga nele um deus da imagem. Ele só não foi à Croisette, em 2022, para acompanhar "EO", por ter sofrido um acidente, na Polônia, onde machucou o joelho numa queda. "Quero que as pessoas olhem o mundo com o olhar desse burro", disse o cineasta em um vídeo enviado a Cannes. "Quero tocar corações".

 

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