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Um Ang Lee que ninguém viu

Billy Lynn, vivido por Joe Alwyn, com o oficial budista vivido por Vin Diesel | Foto: Tri Star Pictures/Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Envolvido num projeto de série sobre Bruce Lee, Ang Lee ganhou o Oscar de Melhor Direção duas vezes, por "O Segredo de Brokeback Mountain" (Leão de Ouro de 2005) e "A Vida de Pi" (2012) e ainda tem um par de Ursos de Ouro na estante, conquistados nas Berlinale de 1993 e de 1996, por "Banquete de Casamento" e "Razão e Sensibilidade".

Dirigiu um fenômeno de bilheteria com status de cult, "O Tigre e o Dragão" (que custou US$ 17 milhões e faturou US$ 214 milhões, em 2000) e ainda pilotou, há 20 anos, um dos longas mais inusitados da Marvel: "Hulk", com Eric Bana e Nick Nolte. Mas seu último longa, "Projeto Gemini" (2019), com Will Smith, gastou aos tubos e faturou pouco.

O desastre colocou sua carreira numa geladeira. O longa que havia lançado antes do thriller com Smith, a alegoria política "A Longa Caminhada de Billy Lynn" ("Billy Lynn's Long Halftime Walk", 2016), fracassara também, e nem chegou a ser lançada comercialmente no Brasil. Contudo, o Tempo fez dela um cult, que ganha vitrines do streaming agora, em solo brasileiro, via Apple TV. É possível aluga-lo ainda na Claro Vídeo e na Amazon Prime.

Um par de frases - "Somos uma nação de crianças, Billy. Vamos pra outros países para crescer" - expõe o tônus ácido de seu roteiro, demarcando um espírito crítico de Ang Lee acerca da vida nos EUA que já vinha de "Tempestade de Gelo" (prêmio de Melhor Roteiro em Cannes, em 1997). O cineasta taiwanês trata a sociedade estadunidense sem pudor, como pode ser visto no arrebatador "A Longa Caminhada de Billy Lynn", uma produção de US$ 40 milhões, encarada como o "Platoon" anos 2010. Na venda de ingresso, seu faturamento estagnou em US$ 30 milhões. Apesar do mau desempenho comercial, o filme se impõe como o rearranjo de todo patrimônio estético que Lee construiu ao longo de seus 41 anos de cinema. Seu primeiro curta-metragem, "I Wish I Was by That Dim Lake", foi feito em 1982 e, de lá em diante, ele estabeleceu um dos mais prósperos legados do audiovisual contemporâneo. Basta ver o longa que deu a ele um segundo Leão dourado em Veneza, "Desejo e Perigo", de 2007, hoje na grade da Amazon Prime. Porém, nada disso comprou o perdão da América frente a seu escárnio contra o DNA bélico de seus anfitriões, para quem ele é "o asiático da casa".

Com base em romance escrito por Ben Fontain, "A Longa Caminhada de Billy Lynn" se debruça sobre uma tropa cujas ações - no Iraque e nos EUA - servem com perfeição ao interesse de empresários e da mídia, permitindo um debate plural sobre o lugar do guerreiro.

Seu eixo dramatúrgico são as experiências (no front iraquiano e no front dos afetos) de um rapaz de 19 anos, Billy Lynn, que volta do Oriente Médio como herói. Além do uso inusitado de cores que faz (num processo de sinestesia raro gerado pela resolução 4K), Lee impressiona de cara pela escalação do inglês Joe Alwyn como Lynn: então estreante, o guri tem um olhar mesmerizante, no qual traduz sua angústia. Aliás, a angústia em foco não é só a dele, mas de toda a juventude americana, empurrada para brigar e matar nos campos de batalha do Iraque sem entender o motivo. Lynn tem lá seus fantasmas, tem lá mágoas de família (a principal é ligada à sua irmã mais velha, vivida nas raias da perfeição por Kristen Stewart) e teve perdas no front. Mas não estamos em um filme de farda convencional: nada disso vai detê-lo, nada disso será o moto das cenas, até porque, o roteiro é menos personalista do que parece, abrindo-se para outros personagens e para vivências que enriquecem Flynn como protagonista, como seu caso com a líder de torcida Faison (Makenzie Leigh); seu convívio com o "irretrocedível" Sargento Dime, papel de um inspiradíssimo Garrett Hedlund; e suas trocas com o empresário esportivo Oglesby, cartola do time de futebol americano de Dallas, vivido pelo comediante Steve Martin num registro pouco usado por este titã das artes. Merece destaque ainda o milico budista Shroom, vivido por um Vin Diesel veloz e furioso no esforço de se reinventar.

Trata-se de um Ang Lee inusitado, mas, perturbador.

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