Por: Rodrigo Fonseca

'Malhação' cult

'A Malta e Eu' ('The We And The I') fez sua estreia na Quinzena dos Realizadores de Cannes há 11 anos | Foto: Fotos Unifrance/Divulgação

Dedicado à carreira internacional de "Le Livre Des Solutions" enquanto se prepara para a festa de 20 anos de "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças" (sua obra-prima), o realizador francês Michel Gondry reaparece no audiovisual brasileiro, pelas vias do streaming, com um de seus filmes mais tocantes (e menos conhecidos): "The We And The I".

Parece "Malhação", a dos bons tempos, porém com um molho rascante e uma aposta radical da inclusão. Basta digitar na plataforma Reserva Imovision o título de base lusófona "A Malta e Eu", inspirado por um verbete do português de Portugal, para ver essa joia exibida na abertura da Quinzena de Cineastas de Cannes, em 2012.

Inédito em salas de projeção, no circuito comercia deste país, há onze anos, o filme promove uma exuberante imersão do diretor no realismo. Sua trama se costura a partir das relações de uma turma de estudantes de periferia dos EUA, num ônibus, no último dia de um ano letivo. Um vídeo jocoso na internet sobre um dos alunos desse grupo detona um debate sobre companheirismo e bullying ao mesmo tempo em que dois rapazes engatam uma dura discussão que revela sua relação amorosa.

"Comecei a fazer filmes no tempo da MTV, quando o videoclipe era linguagem e, não, um mero adorno. Havia uma reverência na maneira como eles eram assistidos, pois havia um espaço, um trabalho curatorial. Hoje, a cultura de garimpar no YouTube tirou das pessoas o respeito de ver o que a gente tinha para contar, de ouvir as histórias que a gente depreendia de letras. Eu fiz ´The We And The I' pensando na maneira como a juventude se relacionava com imagens e reagia a elas. Uma maneira que mudou. Mas as imagens ainda guiam decobertas", disse Gondry ao Correio da Manhã em Cannes.

É difícil para ele evitar citações à sua obra pregressa diante do culto em torno de seus filmes. "O maior desafio da minha carreira, a cada novo passo, é tentar fazer com que as pessoas se esqueçam do que eu fiz e pensem no que estou fazendo", explica Gondry, ciente de que "Le Livre Des Solutions" foi considerado o filme mais engraçado de Cannes este ano.

Aos 60 anos, ele virou celebridade na década de 1990 com os clipes da cantora islandesa Björk, em especial "Human Nature". Ele, Spike Jonze e Jonathan Glazer (ganhador do Grande Prêmio do Júri da Croisette deste ano com "The Zone of Interest") foram os nomes mais transgressores desse tipo de publicidade tão autoral que a indústria fonográfica um dia consagrou, com a ajuda da MTV. Mas foi a história de amor de um artista gráfico (Jim Carrey) para preservar as memórias do amor pela complicada, mas encantadora mulher de sai vida, Clementine (Kate Winslet), que fez Hollywood se dobrar ao realizador. Até Oscar, o de Melhor Roteiro Original, ele recebeu, dividindo com Charlie Kaufman.

"Eu pedia para que Jim olhasse para a câmera, quando estávamos filmando, como se estivesse olhando para Clementine, para imprimir, a cada frame, a sensação de quem olhar um amor partindo", explica.

Envolvido faz pouco com a série "Kidding", também com Jim Carrey, Gondry chegou a filmar a adaptação do seriado "Green Hornet", sobre o super-herói Besouro Verde, para Hollywood, em 2011, com Seth Rogen. A fim de ter mais liberdade, passou a se concentrar mais na cena industrial europeia. Em "Le Livre Des Solutions", seu protagonista é Marc, um cineasta bipolar vivido por Pierre Niney. Ninguém na classe cinematográfica o entende. Gondry sabe o que é isso, pois passou por um baque com "L'Écume Des Jours" (2013), de Boris Vian. Sua versão pra telona, "A Espuma dos Dias", gastou aos tubos e não faturou o que e o quanto esperavam. Mas ele seguiu em campo, regressando agora. "Antes de 'Brilho Eterno...', eu fiz um longa chamado 'Natureza Quase Humana', que não fez sucesso, em parte por eu não ter percebido que os personagens precisavam de mais confecção do que a forma. Era necessária mais reverência àquelas figuras sobre as quais falávamos e menos obsessão com a forma. Dali eu entendi o que deveria tentar fazer e empreguei isso neste novo trabalho, que não é um filme sobre mim, ainda que com elementos similares", explica o cineasta. "Ainda busco surpreender".

 

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