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Codinome: Memória

O ex-guerrilheiro Clemente tem sua história de luta pela democracia resgatada em .doc de Isa Albuquerque | Foto: Cátia Coelho/Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Presente em duas plataformas digitais com seus longas-metragens de ficção - "Ouro Negro" está na Amazon Prime e "História do Olhar", na Reserva Imovision -, a diretora Isa Albuquerque vai dar um novo passo no streaming ao levar para a Claro TV (NOW), Vivo Play e Oi Play um exercício documental em prol da democracia, "Codinome: Clemente".

O filme parte das memórias guerrilheiras de Carlos Eugênio Paz (1950-2019). Ele relembra sua participação na luta armada contra a ditadura militar entre as décadas de 1960 e 1980. Com a alcunha de Clemente, participou da Ação Libertadora Nacional (ALN) e agiu em diversas ações urbanas da luta contra o governo de farda iniciado em 1964. Por meio de depoimentos dele e de suas companheiras e seus companheiros de luta, somados a imagens de arquivo, Isa constrói um retrato de um momento conturbado da História do Brasil. É um longa sobre sonho. Sonho que sonhava acordado.

Cabe a palavra de herói em que medida na figura de Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz?

Isa Albuquerque: Carlos Eugênio Paz, o Clemente, foi um legítimo representante de uma geração rebelde que entrou na clandestinidade para resistir à tirania imposta pelas ditaduras militares implantadas, progressivamente, no Cone Sul, entre os anos 1960 a 80. É uma geração que defendia a implantação do socialismo como forma de combate às profundas desigualdades sociais e lutava com todas as armas contra os regimes de exceção. Era perigoso ser jovem, nos anos 1960, pois o pensamento era cerceado; a arte era censurada; os intelectuais, os professores, os estudantes eram perseguidos, torturados e mortos. O mundo estava profundamente dividido entre duas matrizes ideológicas: o capitalismo e o comunismo. Com apenas 16 anos, ao ser recrutado por Alex, um colega do colégio Pedro II, ele ingressou na clandestinidade para se tornar discípulo do guerrilheiro baiano e deputado federal cassado, Carlos Marighella. Sua atuação corajosa e altamente eficiente, como guerrilheiro provado na guerra de guerrilhas, rendeu-lhe a dimensão de lenda entre os companheiros das organizações de Esquerda. A morte dos dois principais líderes fundadores da ALN, a Ação Libertadora Nacional, abalaram seu caminho. Primeiramente morre Marighella, executado em 4 de novembro de 1969, em São Paulo. Depois, Joaquim Câmara Ferreira, após intensa tortura, em 23 de outubro de 1970. Com essas perdas, Clemente, tornou-se o terceiro comandante da ALN, com pouco mais de 20 anos, liderando mais de 200 ações, entre assaltos, sequestros e 'justiçamentos'. Eram tempos extremos que exigiram dos jovens daquela época ações igualmente extremistas. "Nós estávamos em guerra", ele justificava.

Que perfil essa vivência garante a ele?

Clemente era o senhor da guerra. Era um arquivo vivo da guerrilha nos anos de chumbo, pois foi uma das raras lideranças que sobreviveram para relatar essa história. Heroica foi essa geração dos anos 1960, que lutou contra os regimes fascistas, aqueles que usam a força para se estabelecerem no poder, destroem a democracia e usam a tortura e a morte como método. Carlos Eugênio Paz foi um dos mais bravos combatentes da esquerda armada. Teve a cabeça a prêmio, porém, jamais foi capturado. Faleceu vitimado por um câncer de laringe, aos 69 anos, em 2019.

Qual Brasil está sintetizado na figura de Clemente?

Carlos Eugênio Paz permaneceu seis anos na clandestinidade, em sua luta desigual contra as forças da repressão. Sempre assumiu seus atos extremistas e jamais negou as ações que cometeu. Costumava afirmar que sua geração tinha o dever histórico de resistir ao golpe empresarial militar de 64. 'Nós somos um povo que luta e não um povo que apanha! Apanhamos porque lutamos', afirmava ele, que considerava essenciais as lutas pelos direitos dos cidadãos e reprovava a desigualdade social que se ampliava no país, com o avanço do neoliberalismo. Clemente foi um dos últimos exilados a retornarem ao Brasil, em 1981. Voltou após um auto exílio de oito anos, na França, quando ficou refugiado na embaixada francesa, em Brasília, por conta da sentença de morte que, segundo afirmava, ainda pairava sobre sua cabeça. Mais recentemente, ele previu o retorno dos militares, o que acabou acontecendo, em certa medida, com a "democradura" implantada após a prisão do presidente Lula e o golpe contra a presidenta Dilma, em 2016. Nos últimos dois anos de sua vida, eu não tive mais muito contato com o Carlos Eugênio, pois o filme estava rodado. Felizmente, eu consegui realizar uma das primeiras exibições com sua presença, no Festival du Cinémà Brasilien de Paris. Ele já estava muito debilitado e emocionou-se ao assistir ao filme em tela grande. Em sua palestra, nesse festival, ele declarou que acreditava no futuro do Brasil, nas lutas populares por direitos essenciais e, principalmente, na mobilização do povo negro. Um pouco antes de falecer, me telefonou para avisar que estava morrendo. Disse ainda que não havia mais lugar para ele, nesses novos tempos. Confiava nas novas gerações contra a violência e o arbítrio.

Seu longa anterior, "Ouro Negro", está na rede, nos streamings. Como aquele filme marcou a sua trajetória?

"Ouro Negro" é a história de um cientista alemão radicado em Alagoas, onde pesquisava a ocorrência de petróleo, nos anos 1910, que foi assassinado por agentes dos trustes internacionais. Seus descendentes levaram o projeto adiante, até terem o petróleo estatizado pelo governo Vargas. Trata-se da saga do petróleo brasileiro, um épico. Eu havia acabado de me mudar com a minha família para o Rio de Janeiro, em 1991, e, então, trabalhava na antiga TVE, como repórter. Comecei a frequentar os cursos da Fundição Progresso. Tratei de me engajar em todos os cursos de roteiro e direção que encontrava por lá. "Ouro Negro" foi criado com colegas desse período como a Duba Elia e a Diana Nogueira.

 

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