Febre de BDs
Expectativa em torno de 'Lusitânia', o novo Astérix, amplia a procura por graphic novels de origem francesa no mercado editorial brasileiro e agita vendas de quadrinhos
Nem Marvel, nem DC: na Europa, quando o assunto é quadrinho, o papo é BD. A sigla de banda desenhada enlaça fenômenos como "Cyborgs", escrito por Jean-Luc Istin e desenhado por Kael Ngu com foco na transformação dos corpos numa Terra do Amanhã. Nela, a engenharia robótica usada para substituir braços, pernas e até espinhas é reservada para a elite. Apesar disso, Russel, um gênio em mecanologia, ajuda os menos afortunados, até mesmo elevando alguns à categoria de super-humanos... os tais ciborgues do título... como a justiceira Yuko, que enfrenta a horda de vilões Trakeurs.
As altas vendas desse álbum são um reflexo da corrida às livrarias e lojas especializadas em HQs (gibiterias, ou BDterias) em busca de um lançamento em sintonia com o legado gaulês de René Goscinny (1926-1977) e Albert Uderzo (1927-2020). Os pais de Astérix e de Obélix criaram uma dupla de personagens que se candidatam à Eternidade. A recente publicação de uma série de revistas em formatinho (cerca de 27 cm) com o cãozinho Ideiafix trouxe alegria para as vendas do setor. A felicidade maior, no entanto, está agendada para 23 de outubro, data da publicação de "Astérix en Lusitanie". É uma cruzada ambientada nas terrinhas peninsulares onde fica Portugal. Com a estreia recente de uma série de animação na Netflix baseada no espólio criativo de Goscinny e Uderzo, os holofotes sobre essa grife gráfica estão com as luzes em força total.
"Astérix en Lusitanie" conta com a arte de Didier Conrad, quadrinista hoje responsável por dar sequência às peripécias gráficas do guerreiro criado na revista "Pilote", em 29 de outubro de 1959. Ele e o roteirista Jean-Yves Ferri já trabalharam no universo de Goscinny e Uderzo antes em "A Filha de Vercingetorix", lançado entre nós pela Ed. Record. Na Fnac e nas revistarias de Cannes, todo dia alguém vai lá ter se tem um latido novo de Ideiafix ou se já chegou essa tão aguardada incursão de Obélix e seu amigo invocado pela pátria dos pastéis de nata. Com isso, o comércio das BDs se amplia. Uma das que mais saem é "Le Tueur", uma série de tramas policiais quadrinizadas pela dupla Matz (autor dos roteiros) e Luc Jacamon (seu desenhista), que foi publicada originalmente pela editora Casterman, a partir de 1998, na coleção Ligne Rouge. Virou filme, em 2023, com Michael Fassbender no papel principal e David Fincher na direção. Chama-se "O Assassino" mesmo e está na já citada Netflix. Trata-se da saga de um matador cheio de tormentos, alienado da culpa a partir do senso de perfeccionismo radical que move seu gatilho.
Em sintonia com o lançamento da Netflix de "As Ladras", a editora Pipoca e Nanquim lança por aqui uma versão da HQ que inspirou o filme estrelado e dirigido por Mélanie Laurent: o thriller gráfico "A Grande Odalisca", escrito por Bastien Vivès e desenhado por Florent Ruppert. Nele, Alex e Carole, duas assaltantes sedutoras e desencanadas, voam alto em seus golpes e são capazes de furtar qualquer coisa, em qualquer museu. Mas diante da dificuldade de sua próxima missão, que as levará ao Louvre para surrupiar a obra-prima de Jean-Auguste Dominique Ingres, elas saem em busca de uma terceira colega. Será que a motociclista Sam, com seus vários talentos, estará à altura do cargo?
Nas lojas especializadas do Rio e de São Paulo, algumas das melhores BDs com tradução trazem a marca criativa do cineasta, tarólogo e xamã chileno (radicado na França) Alejandro Jodorowsky, o diretor de "El Topo" (1970), como é o caso da BD "Sangue Real", já à venda na Amazon, sob edição da Comix Zone. Dongzi Liu ilustra o álbum, regando sequências de batalhas capa & espada com coágulos frescos. A trama começa com um rei, o destemido Alvar, ferido, traído e abandonado à beira da morte. Destruído por seus inimigos, ele jura recuperar seu trono e seus direitos. Com o coração inflamado por um ódio selvagem, ele semeia a loucura e o terror, até que sua sede de vingança se volta contra ele, em um turbilhão de lágrimas e sangue. São 232 páginas de cores exuberantes.
Jodorowsky volta a soltar seus demônios avessos a moralismos em "Bórgia", amparado pelo traço do mais renomado erotômano do quadrinho na Europa: o italiano Milo Manara. A edição da Pipoca e Nanquim compila quatro volumes publicados no exterior entre 2004 e 2010 num tijolaço caliente de 228 páginas. Sua narrativa nos leva ao século XV, um tempo no qual, por meio de intrigas, subornos, ameaças e outros crimes, o espanhol Rodrigo Bórgia torna-se o papa Alexandre VI e dá início a um dos períodos mais controversos e deturpados da Igreja Católica, enquanto ostenta o cargo de seu representante máximo (de 1492 a 1503). Tido como o sumo pontífice mais corrupto de todos os tempos, ele faz de sua família o primeiro clã mafioso da História. Quatro grandes personagens - César, Lucrécia, Giovanni e Godofredo - levam a marca corrupta de Rodrigo pelo mundo.
Também nos chega via Pipoca & Nanquim o imperdível "O Voo do Corvo", de Jean-Pierre Gibrat ("Destino Adiado"). Por meio de suntuosas ilustrações, somos levados a 1944, durante a ocupação alemã da França. O cerco nazista já está com os dias contados quando Jeanne, combatente da Resistência, é presa após uma denúncia anônima. Enquanto aguarda ser entregue às tropas hitleristas, ela conhece François, um debochado ladrão apolítico que a ajuda a escapar e os lança em uma aventura fascinante pelos telhados e ruas de Paris.