Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Mafalda, quem diria, chega aos 60

Mafalda, a menininha contestadora, tem suas tiras editadas em 30 países e traduzida em 16 idiomas | Foto: Reprodução Quino

Em decorrência da negativa dada pela Argentina ao votar "Não!", no último dia 14, contra uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), proposta para intensificar esforços na erradicação de violências contra as mulheres, a figura da menina Mafalda, a mais famosa personagem dos quadrinhos de nuestros hermanos, passou a circular com força total nas redes sociais e na imprensa impressa.

Suas tirinhas nunca saíram do radar da mídia, sobretudo dos veículos jornalísticos mais à esquerda, contudo, atitudes do atual presidente argentino Javier Milei amplificaram a relevância das críticas expressas pela garota a partir dos balõezinhos desenhados por Joaquín Salvador Lavado Tejón (1932-2020), ou apenas Quino.

As deliberações conservadoras (afinadas com a filosofia da ultradireita) de Milei encontram na heroína mirim de seis anos uma dissonância.

O simbolismo de oposição ao atual regime que ela carrega faz crescer a procura pelas antologias de suas historietas em meio à comemoração dos 60 anos de sua estreia nas HQs.

Continua na página seguinte

 

Tirinhas ainda muito atuais

Criador e criatura: Quino deixou de criar tiras da Mafalda em 1973, mas sua obra segue plena em contemporaneidade, inspirando compilações e coletâneas da menina mundo afora | Foto: Divulgação

Mafalda foi lançada em 29 de setembro de 1964, no semanário "La Plana". Ao mesmo tempo em que a venda de seus álbuns (editados no Brasil pela Martins Fontes) aquece, a Netflix prepara uma série animada com ela, desenvolvida pelo diretor Juan José Campanella, consagrado com o Oscar por "O Segredo Dos Seus Olhos" (2009).

Tem Mafalda por todo lado na web. Logo que se entra no site da Martins Fontes, encontram-se compilações das tramas de Quino, como "Nesta Família Não Há Chefes", "Feminino Singular" e o precioso "Todas as Tiras". Já no buscador da Amazon, chega-se a um "Toda Mafalda" de capa dura. Na Europa, em solo ibérico, a Nestlé lança uma linha de chocolate ao leite com a carinha da guria na embalagem.

Best-seller com direito a estátuas em Buenos Aires, Mafalda ganhou um longa-metragem de animação com seu nome em 1982, dirigido por Carlos D. Márquez, que hoje pode ser visto no YouTube. Logo na sequência de abertura, ela desfila ironia: "A primavera é o que há de mais publicitário na vida".

Reza a lenda que Quino teria publicado um total de 1.928 tiras estreladas por sua desbocada criação, que sofreu com a censura fardada de vários países sul-americanos (e na Espanha de Franco) onde generais se meteram no controle de suas nações, em tempos de jugo ditatorial. Em solo espanhol, ela chegou a ser publicada com uma tarja, "É um quadrinho para adultos!", como forma de alertar mães e pais de seu teor subversivo. Sempre preocupada com a paz mundial, Mafalda se rebela com o estado de coisas de um mundo assolado pelo capitalismo. Diz num de seus cartuns mais famosos: "Vamos tomar vacina contra o ódio!". Retruca os detratores de sua forma arredonda a dizer: "Não sou gorda, sou repleta de amor". Seu existencialismo foi comparado ao Charlie Brown, de Charles Schulz (1922-2000), embora carregue uma atitude mais mordaz do que a postura "paz e amor" do dono do Snoopy.

Antes de brilhar no mercado de artes gráficas, Mafalda foi esboçada num reclame comercial publicitário de 1963, feito por Quino sob encomenda para uma propaganda da empresa de eletrodomésticos Mansfield, a ser publicada no diário "Clarín". Quino recebeu a missão de criar uma personagem cujo nome deveria começar com "Ma", para lembrar o nome da firma. Com base no filme "Dar La Cara" (1962), de José Martínez Suárez, estrelado pelo mítico cantor e cineasta Leonardo Favio (1938-2012), o cartunista bolou o perfil de sua estrela de papel. Há uma sequência desse longa na qual duas pessoas discutem ao lado do berço de um bebê chamado Mafalda.

A tal campanha publicitária acabou suspensa, mas ela acabou ganhando periódicos como "Mundo" e "Siete Días Illustrados", alcançando espaço nobre no miocárdio do público leitor. Até o início da década de 1970, Quino seguiu firme e forte com sua produção diária, até se estafar. "É uma escravidão", dizia, numa lógica marxista, fechando a fonte em 1973. Só voltou a desenhá-la em campanhas humanistas, como um pôster da UNICEF, de 1976, usado para promover a Declaração Universal dos Direitos da Criança.

Hoje "Mafalda" é editada em 30 países, traduzida em 16 idiomas. Milei que se cuide.