Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um grito ecoa no céu da HQs: 'Shazam!'

Criado em 1939, Shazam volta às bancas num encadernado de luxo da DC Comics, lançado por aqui com pompa pela Panini | Foto: Divulgação

Grife quadrinística por trás da obras-prima "O Reino do Amanhã", Mark Waid chega aos 62 anos com seu emprego garantido (e renovado) na indústria do pop ao propor uma releitura do Shazam. Criado à imagem e à semelhança do ator Fred MacMurray (de "Pacto de Sangue") em 1939, num esforço editorial da Fawcett Comics em buscar um rival comercial para o sucesso de vendas do Super-Homem, o herói chamado Capitão Marvel é cria dos quadrinistas CC Parker e Bill Peck. Ele volta às bancas num encadernado de luxo da DC Comics, lançado por aqui com pompa pela Panini. Roger Cruz e Dan Mora assinam os desenhos, que tentam reaproximar o lendário personagem das novas gerações. Um acerto já pode ser atribuído ao título: ele ajudou a fazer do filme baseado no Shazam, lançado nas telonas 2019, um cult no streaming, via plataforma Max.

O longa-metragem e o encadernado de Waid conversam frontalmente. Ambos são capazes surpreender a plateia em múltiplos aspectos, começando pela precisão de seus roteiros. A HQ começa com uma virada brusca, na qual o Shazam é tomado de sincericídio e ódio ao sar uma entrevista que detona sua imagem. Isso se passa no momento em que seu alter ego, Billy Batson, prepara um podcast no qual narra as aventuras do cruzado de capa.

O filme também lida com altos e baixos na imagem do vigilante. Prolífico curta-metragista, respeitado nos longas por um par de filmes de terror ("Quando as luzes se apagam" e "Annabelle 2: A Criação do Mal"), o diretor David F. Sandberg encontra no vetusto super-herói da década de 1940 um caminho de equilíbrio entre aventura, humor e drama familiar que a DC Comics vinha buscando desde o fim da franquia "Batman", de Christopher Nolan, em 2012. Nolan criou uma trilogia imbatível, em termos éticos e estéticos, mas, depois dela, o selo editorial por trás do Homem-Morcego quis um caminho mais popular, menos sombrio (leia-se adulto), e buscou proximidade com a linha narrativa do Marvel Studios - maior máquina de dinheiro do cinema contemporâneo. No esforço de bater de frente com a rival, a DC, ligada à Warner Bros., saiu na frente na questão do empoderamento feminino, ao lançar "Mulher-Maravilha", de Patty Jenkins, em 2017, e foi por trilhas do romantismo clássico com o brilhante "Aquaman", de James Wan, lançado em 2018.

Percebe-se uma singular excelência na forma como o estúdio e a editora tratam "Shazam!" em dramaturgia e na forma, nas bancas e nos cinemas. No filme de 2019, a beleza se deve à fotografia do belga Maxime Alexandre (de "A freira"). Sua luz ressalta o colorido de figurinos e cenários dando a eles um traço similar ao das HQs dos quadrinistas que resgataram e repaginaram Shazam nos anos 1990 e 2000, como Jerry Ordway e Gary Frank. Essa alusão, que cria um amálgama plástico com a linguagem dos quadrinhos, garante a Sandberg potência formal o suficiente para dialogar com cartilhas dos filmes pop de aventura e comédia fantástica dos anos 1980, apogeu de ambos os gêneros. Há uma explícita menção ao (hoje cult) "Quero ser grande" (1988), de Penny Marshall, na curva dramática do menino Billy Batson, que se transforma num Maciste com poderes de relâmpago (e outros dons). À caça do paradeiro da mãe, de quem se perdeu ainda bem guri, Billy (Asher Angel) se torna o escolhido de um feiticeiro milenar que preserva o equilíbrio entre as forças do Bem e os Sete Pecados Capitais. Estes ganharam liberdade ao serem acessados por um pesquisador cheio de cobiça, Thaddeus Sivana - ou, entre nós, brasileiros, Dr. Silvana -, vivido com um grau sombrio de vilania por Mark Strong, um sofisticado ator.

Na trama do quadrinho dr Waid, escrita com afinada adequação às redes sociais, nota-se a mesma trilha dramática. As primeiras páginas narram como Billy acaba ganhando habilidades super-humanas, como força extraordinária, voo e o dom de produzir raios. No longa de Sandberg, o paladino ganha silhueta de adulto, a do poço de carisma Zachary Levi, da série "Chuck" (2007-2012), hoje em cartaz com "Harold e o Lápis Mágico", de Carlos Saldanha.

Generosa na dosagem de adrenalina e lirismo, a escrita de Waid na HQ encontra o limite preciso entre ação e comédia, sem jamais resvalar nos excessos de chanchada. É um álbum gráfico sobre a dor de amadurecer, que ganha analgésicos se cercada de amizades, ou de esperanças... ou de magias. Mary Marvel e Capitão Marvel Jr., a irmã e o irmão adotivos de Batson também têm destaque na revista, que têm 176 hipercoloridas páginas.

Em 2023, Sandberg filmou com Levi uma malfadada sequência de "Shazam!", batizada de "Fúria dos Deuses", com Helen Mirren no elenco. Essa produção também bate ponto no streaming.