Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O gibi que vai peitar Milei

As primeiras imagens da série com Darín vivendo o herói argentino das HQs instigam a internet | Foto: Divulgação/Netflix

 

É possível comprar "O Eternauta", numa edição da Martins Fontes, na Amazon, assim como sua releitura, El Eternauta 1969", da Comix Zone, numa dobradinha essencial para a espera da tão esperada versão audiovisual de um quadrinho que divide águas (políticas) na América Latina, sobretudo neste momento de Javier Milei no poder. Até a Malfalda de Quino bate cabeça para Juan Salvo, espécie de emissário de uma Argentina catastrofista, vestido num traje de proteção, que parece roupa de mergulho. Estima-se que até o fim do ano, a série, desenvolvida pela Netflix, estrelada por Ricardo Darín chegue entre nós.

Bruno Stagnaro, realizador do cult "Pizza, Cerveja, Cigarro" (1998), assina uma direção que muitos gigantes portenhos disputaram. As primeiras imagens de seu trabalho, que começam a circular pela web sugerem que ele foi a escolha certa, apesar da concorrência.

Até Lucrecia Martel, a diretora de "O Pântano" (2001), esteve no páreo para filmar esse libelo gráfico contra o jugo imperialista sobre os estados latino-americanos. Sua estreia, nos meses a seguir, soa como reação de protesto ao governo de direita de Javier Milei e sua postura azeda com a ebulição cultural democrática de sua pátria.

O simbolismo de "O Eternauta" - lançado de 1957 a 1959 no suplemento "Hora Cero Semanal" - vai além de sua inequívoca potência visual e de sua dramaturgia sociológica, de prosa com a literatura H.G. Wells (1866-1946). Uma tragédia (cujo bastidor aponta suspeitas de vetores governamentais) em torno do roteirista Héctor Germán Oesterheld, criador da trama, amplia a importância da HQ. Nascido em 1919, ele desapareceu em abril de 1977, em meio a uma reunião de militantes de esquerda, como reação da ditadura aos antipatizantes do regime militar na Argentina. Suas quatro filhas caíram na clandestinidade e acabaram assassinadas. Duas delas estavam grávidas quando foram mortas.

O "sumiço" de Oesterheld teria ocorrido pouco depois de ele publicar a parte II das missões do Eternauta., lançada em 1976, pela Ediciones Record. Estima-se que o sucesso da primeira temporada do projeto com Darín no www.netflix.com pode assegurar a adaptação desse segundo material com Juan Salvo, papel confiado ao astro de "O Segredo De Seus Olhos", o ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2010. Esse Volume Dois também saiu em português pela Martins Fontes.

Com desenhos de Francisco Solano López (1928-2011), "O Eternauta" é uma ficção científica. Sua carreira comercial em terras argentinas se deve ao empenho da Ediciones Frontera, empresa fundada por Oesterheld e seu irmão, Jorge Mora. A trama é centrada na conversa entre um roteirista de HQs (alter ego do próprio Oesterheld) e um viajante do tempo que se materializa em sua casa numa noite. Apresentando-se como O Eternauta, o sujeito misterioso, que se chama Juan Salvo, relembra seu passado. Vestido com trajes de borracha e máscara de mergulhador, ele enfrenta uma neve radioativa que cai sobre Buenos Aires, provocando morte em massa. Aos poucos, Oesterheld transforma o relato de Salvo numa releitura futurista de "Robinson Crusoé", de Daniel Dafoe (1660-1731).

Em 1999, pouco antes de o cinema argentino entrar numa fase de reinvenção (e consagrar Darín), os episódios mais sangrentos da trajetória de "O Eternauta" foram relembrados pelo documentário "H.G.O.". Nele, os cineastas Víctor Baylo e Daniel Stefanello, entrevistam colegas de Oesterheld nos quadrinhos, além de escritores como Mempo Giardinelli. Seu trabalho com Salvo é uma metáfora dos riscos que a Argentina corria sob o jugo de um governo de ações fascistas. No fim de sua vida, ele foi deixando analogias e outras figuras de linguagem de lado e escancarando suas denúncias. A presença de Darín na série "El Eternauta" é uma promessa de que esse denuncismo dos anos 1970 perfume os roteiros que o streaming promete consagrar.

 

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