CRÍTICA / DISCO / ENTRE ARCOS: Um álbum especial
Hoje falaremos de "Entre Arcos" (Mandril Áudio), álbum do mestre fandangueiro Zé Pereira e do músico e pesquisador Felipe Gomide. O primeiro, guardião da tradição caiçara do fandango, é natural de Ariri, no litoral de São Paulo; o segundo, um paulistano, é referência no ensino e difusão da rabeca e do pífano. Importante é que, juntos, revelam a energia do encontro de suas gerações.
Ungido a patrimônio imaterial, o fandango é uma festa cuja dança a dois, feita em compasso ternário, tem influências árabe e flamenca. Proveniente de Portugal e Espanha, o gênero, uma das manifestações populares mais antigas do Brasil, foi trazido para cá pelos colonizadores. Apesar de ter nomes diferentes a depender da região do Brasil, hoje, por se tratar de Mestre Zé Pereira, trataremos apenas do fandango caiçara.
Ao ouvir as onze faixas, todas de autoria do mestre, vieram-me às ideias sua semelhança espiritual com as canções praieiras de Dorival Caymmi: o mar, as aves marinhas, os pescadores, estão ali como imagens singulares de um país com sete mil quilômetros de litoral. Ouça o álbum em https://acesse.one/EYshX.
"Entrada do Divino", tocada apenas pela rabeca de Mestre Zé Pereira, é precedida pelo alvoroço de aves a voejar.
"Meu Pé de Rosa" vem pelas rabecas de Mestre Zé Pereira e Felipe Gomide, numa levada amaxixada que lhe dá ares faceiros.
"Adeus Morena": o piano inicia, e logo as rabecas vêm para se juntar à laúza das aves marinhas.
"Ai Moreninha": ouve-se o marulhar das ondas e logo o cello toca com ele, para ele, enquanto Mestre Zé anuncia: "O que aprendi, estou aprendendo, ainda". As flautas e as rabecas vibram alegremente.
"Avião Estrangeiro": a sanfona resfolega e o folguedo rola com as rabecas.
"Embaixo da Laranjeira": a flauta vem, e o som da viola machete de Mestre Zé Pereira se mistura com ela. As rabecas vêm. A viola ponteia e a percussão açula.
"Larilailai": uma nota contínua da sanfona se cola à rabeca e o duo soa afetuoso. Vêm as duas rabecas e o couro come. O bandolim se achega com tudo.
"Cabelo Ondado": as rabecas, apoiadas pelo pandeiro, encontram-se com o violão e o cello. A festança, com pinta de baião nordestino, come solta, até restar um solo do pandeiro que prenuncia o final.
"Minha Moreninha": o piano inicia e o surdo embalança com a machete.
"Toada de Longe": rabecas, sanfona, percussão, baixo e bandolim, se ajuntam ao cello e a flauta, reverenciando um dos inúmeros toques do fandango.
"Despedida do Divino": a rabeca de Mestre Zé Pereira toca para finalizar um álbum que reflete como poucos a diversidade da música popular brasileira, aquela que, a meu ver, faz dela a melhor do mundo.
Ficha técnica
Ariane Rodrigues (flauta), Natanael Souza (acordeom), Henrique Gomide (piano), Ana Eliza Colomar (cello), Gedeão Soares (percussão), Bruno Pontalti (mixagem e masterização), Felipe Gomide e Rodrigo Ramos (arranjos e produção).
*Vocalista do MPB4 e escritor