Naimaculada canta a cor da cidade sem cores

Álbum de estreia da banda paulistana trata de violência, marginalização e invisibilidade das metrópoles

Por Affonso Nunes

Formado em 2022, o Naimaculada traduz em canções a vida pulsante, vertiginosa e desumanizante em metrópoles como São Paulo no álbum 'A Cor Mais Próxima do Cinza'

Caetano Veloso cantou São Paulo com versos como "E quem vem de outro sonho feliz de cidade / Aprende depressa a chamar-te de realidade / Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso". E Itamar Assumpção traduziu a cidade em "Persigo São Paulo" quando dizia "E não, não / São Paulo é outra coisa / Não é exatamente amor". A vida na maior metrópole da América Latina também de faz presente "A Cor Mais Próxima do Cinza", álbum de estreia da banda Naimaculada que chega às plataformas digitais sob a chancela da gravadora Deck.

O trabalho é um retrato sonoro da vida nas grandes cidades brasileiras, especialmente a cidade desta banda formada há três anos por Ricardo Paes (voz), Pietro Benedan (bateria), Luiz Viegas (baixo e voz), Gabriel Gadelha (saxofone) e Samuel Xavier (guitarra). O grupo constrói uma narrativa musical sobre violência urbana, marginalização e o ritmo frenético da metrópole. "São Paulo é uma cidade cinza, onde ninguém se importa com ninguém", comenta o guitarrista Samuel Xavier, sintetizando o conceito que permeia as dez faixas do trabalho.

O álbum nasceu de experiências concretas dos integrantes na capital paulista. Pietro Benedan desenvolve trabalho no projeto Solidariedade Vegan, que distribui alimentos para população em situação de vulnerabilidade, enquanto o vocalista Ricardo Paes vivenciou a mudança de Osasco para São Paulo. "Meus primeiros contatos com metrô, com as estações mais cheias, a imensidão de concreto e a sensação de invisibilidade de certa forma inspirou o disco", aponta Ricardo. "Sem exceção, a única coisa que te faz ser visível em SP é poder e dinheiro. E a única mudança de perspectiva é quando a gente começa a conviver com as pessoas e passa a também saber como elas se sentem. No final das contas, o disco é sobre isso, encontrar humanidade num cenário desolador como São Paulo."

Musicalmente, o trabalho transita pelo rock psicodélico e alternativo, incorporando a estética da cidade poluída e iluminada. A banda revela as belezas de um lugar cinza e hostil, fundindo gêneros musicais de diversas regiões e épocas, culminando num som que mescla psicodelia, toques de MPB e até hardcore punk com berimbau, refletindo a mistura de culturas presente nos centros urbanos.

Três das dez faixas já foram lançadas como singles: "Eu Sei", "Não É Sobre Peixes" e "Choro de Outono", que se tornaram hits nos shows da banda. "Epítome" apresenta condução de bateria que passeia por tom latino, stoner rock e metal, enquanto a letra aborda uma briga com o tempo. "Não É Sobre Peixes" descreve desentendimentos de um casal, e "Quatro Quina" critica a "normalização do absurdo" contemporâneo. "Mais um acidente na Rebouças/ Sexo virtual, mas nada é real/ Era anti-emocional" são versos do refrão que exemplificam a crítica à rapidez e superficialidade do mundo atual.

"É uma crítica à rapidez e superficialidade do mundo, tanto no sentido das pessoas não se abalarem com um acidente de trânsito como com a prática do sexo virtual, uma desconexão da realidade. Além do canibalismo das redes sociais, a padronização dos corpos e nossa robotização de forma geral", explica Ricardo sobre "Quatro Quina".

Outras faixas exploram temas igualmente densos: "Deus e o Diabo na Terra do Sol" aborda violência policial, "A Arte É Culpada" discute o papel do ofício artístico, enquanto "Luz/Sé", com 11 minutos de duração, transporta o ouvinte numa jornada pelo centro da cidade, onde autorreflexão convive com observações do cotidiano urbano. Esta última é considerada a música mais emblemática do álbum, representando a essência do Naimaculada.

Produzido por Samuel Xavier e mixado e masterizado por Chediak, "A Cor Mais Próxima do Cinza" é um disco denso, profundo e autêntico que merece ser ouvido na íntegra para ser digerido e compreendido em suas múltiplas camadas.