Fábulas da História por Alexander Sokurov

Tem sessão hoje do polêmico novo longa do diretor russo, figura sempre inquieta que une Hitler e Stalin num ambiente onírico em 'Conto de Fadas'

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Os líderes históricos da II Guerra se reúnem em 'Conto de Fadas', de Alexander Sokurov

Putin não vai com a cara de Alexander Sokurov, mas a antipatia é mútua. Veneza catalisou as inquietações políticas que cercam a obra do artesão autoral russo ao projetar sua experiência mais recente, "Director's Diary". Ainda que "saudade" não seja a palavra mais pertinente ao cinema que o realizador de "Arca Russa" (2002) faz, há um toque nostálgico em cena:

"Durante o governo soviético, eu tive a honra de ser amigo de Andrei Tarkovsky (diretor de 'Nostalgia' e 'Solaris') e dividi com ele o gosto de poder ver a vida por diferentes prismas, valorizando sua complexidade", contou Sokurov ao Correio da Manhã, quando começou o roteiro de "Director's Diary" (exibido fora de competição em Veneza), já no calor do ataque da Rússia à Ucrânia. "O que se pode dizer de mais concreto sobre o governo de Putin é que ele é algo complexo. Muito do que se passa e território russo hoje já estava prenunciado nos escritos de Tolstói, está nas páginas de 'Guerra e Paz', mas falta memória".

Aos 74 anos, Sokurov vem trabalhando há cerca de duas décadas com acervos patrimoniais, o que inspirou pérolas como "Francofonia - Louvre Sobre Ocupação", de 2015, hoje disponível na plataforma Reserva Imovison e na Prime Video. Há um interesse do diretor por obras de arte e a forma como elas são preservadas e há um interesse dele pela erosão de signos de Poder. Esse é o eixo de "Director's Diary", uma viagem, sem pretensões de conclusão, do que se viveu no planeta na segunda metade do século XX, a partir das recordações do artista eslavo. Chamar o filme de "biografia espiritual" não seria um erro, sobretudo pelas cicatrizes simbólicas ligadas à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O longa é semelhante a um livro que o espectador lê, folheando as páginas da trama - neste caso, pautada por fatos reais. Espectadores podem acompanhar, analisar e imaginar suas próprias conexões internas com eventos que vão de 1950 a 1999. "Assista-o com paciência, com um coração bondoso, com atenção... Esta história também diz respeito à sua terra natal, ao seu país e ao seu povo. Uma palavra: o Velho Mundo não muda", explicou Sokurov em comunicado ao site de Veneza.

Com 51 prêmios em sua carreira, iniciada em 1974 e consagrada com o Leão de Ouro dado a seu "Fausto", em 2011, o diretor não aceitou a censura a produções russas que se abateu sobre o audiovisual, como retaliação às ações de Vladimir Putin na guerra da Ucrânia. Aproveitou seu status de antipatizante a todas as formas de totalitarismo para deixar circular uma das experiências sensoriais de maior radicalismo de sua obra. Reagiu a arbitrariedade com "Conto de Fadas" ("Skazka"), que lhe rendeu uma indicação ao Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, na Suíça, em 2022. Ele foi premiado lá, em 1987, por "A Voz Solitária do Homem". Foi até o evento helvético de novo com uma alegoria formada por imagens de Hitler, Winston Churchill e Stalin numa releitura mitológica, como se os três estivessem num Purgatório.

"Não existe 'era uma vez' em 'Skazka', nem existem elementos de animação, mas existe a recriação quase fabular de figuras políticas reais, com uma moral da História. Foi um garimpo de arquivos, no qual tudo o que você ouve vem de depoimentos reais colhidos em documentos e em registros fonográficos. Mas não é um documentário. É uma provocação fabular", afirmou Sokurov ao Correio da Manhã, em Locarno, ao analisar "Conto de Fadas", que pode ser visto no Reserva Imovision. "Não é um filme que produz saber. É um filme que questiona".

Hitler já havia sido retratado por Sokurov antes, em "Moloch" (1999), que ganhou o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes. "Minha premissa em 'Conto de Fadas' era retratar figuras políticas proeminentes do século XX, num lugar fronteiriço à fantasia que fazemos delas. Napoelão Bonaparte matou milhares de pessoas em nome da França, invadiu países, desrespeitou os códigos legais de muitas sociedades. Ele se enquadra na concepção histórica do Mal, chegou a ser estudado como vilão. Mas, hoje, há quem o veja como herói. É esse relativismo que me interessa. Eu procuro retratar o que sabemos dessas pessoas, deslocando-as de sua condição circunstancial de Poder e abordando suas inquietações emocionais. Hitler aparece no meu filme como uma figura triste. Stalin aparece cansado, esperando saber quando a Morte vai chegar. É um reflexo da tortura eterna a partir da qual enquadro os dois", diz o cineasta. "E esse enquadramento que busco, na imagem, depende do som, depende dos diálogos que eu reuni. Não faço cinema com medo da palavra. O verbo é parte da energia cinematográfica".

Veneza chega ao fim neste sábado. Entre os concorrentes mais fortes se impõe o thriller "No Other Choice" ("Eojjeolsuga Eobsda") marca a volta do sul-coreano Park Chan-wook às telas. A trama do novo longa do realizador de "OldBoy" (2004) fala sobre um desempregado passa a matar seus rivais na disputa por uma vaga de emprego. Ela é derivada do romance "The Ax" (1997), de Donald Edwin Westlake (1922-2008), filmada antes pelo franco-grego Costa-Gravas, em 2005, com o título "O Corte".