Por: Affonso Nunes

Morre Angela Ro Ro, aos 75 anos

Angela Ro Ro e seu piano deixam saudades no panorama musical brasileiro | Foto: Tatá Barreto/Divulgação

A música brasileira perdeu nesta segunda-feira (8) uma de suas vozes mais singulares e autênticas. Angela Ro Ro, cantora e compositora carioca de 75 anos, faleceu no Hospital Silvestre, no Cosme Velho, vítima de parada cardíaca após procedimento cirúrgico. A morte foi confirmada por Laninha Braga, ex-namorada e cuidadora da artista, e pelo produtor musical Paulinho Lima, amigo de longa data.

A artista estava internada desde julho, enfrentando complicações decorrentes de uma infecção pulmonar que a levou a passar por traqueostomia. O quadro de saúde de Angela havia se deteriorado nos últimos meses, situação que a própria cantora tornou pública em junho, quando recorreu às redes sociais para solicitar ajuda financeira. "Sem perspectiva de alta ou cura para trabalhar, humildemente peço ajuda a vocês", escreveu na ocasião, revelando as dificuldades para custear o tratamento médico.

Angela Maria Diniz Gonsalves nasceu no Rio de Janeiro em 5 de dezembro de 1949 e desde criança carregava o apelido que a tornaria conhecida nacionalmente. O "Ro Ro" surgiu como referência à sua voz naturalmente rouca e grave, característica que se tornaria sua marca registrada. Nos anos 1970, durante uma viagem à Itália, o encontro com o cineasta Glauber Rocha mudaria definitivamente os rumos de sua trajetória artística. Foi por indicação do diretor que, em 1971, participou do álbum "Transa", de Caetano Veloso, tocando gaita na faixa "Nostalgia" - uma colaboração que marcaria sua entrada oficial no cenário musical brasileiro.

Antes de consolidar-se como cantora, Angela viveu experiências que moldaram sua personalidade artística rebelde e autêntica. Em Londres, conciliou trabalhos como garçonete e faxineira com apresentações em pubs, experiência que ampliou seus horizontes musicais e reforçou sua determinação. De volta ao Brasil, passou a se apresentar em casas noturnas cariocas até ser contratada pela Polygram/Polydor, atual Universal Music.

O álbum de estreia homônimo, lançado em 1979, estabeleceu imediatamente o território artístico de Angela Ro Ro. Composto inteiramente por suas próprias canções, o disco trouxe sucessos que se tornaram clássicos da música brasileira, como "Gota de Sangue", "Agito e Uso", "Amor, Meu Grande Amor" e "Tola Foi Você". Suas composições revelavam uma personalidade musical capaz de transitar entre a melancolia e o humor ácido e irônico, sempre com letras diretas e melodias de grande sofisticação. Chegou a ser comparada por muitos com a cantora Maysa, a diva maior das canções de fossa.

A década de 1980 consolidou a artista como uma importante vozes autorais da MPB. Álbuns como "Só Nos Resta Viver" (1980), "Escândalo!" (1981), "A Vida É Mesmo Assim" (1984) e "Eu Desatino" (1985) foram celebrados por crítica e público. Foram trabalhos que demonstravam uma verve romântica e a intensidade das interpretações em canções que falavam diretamente ao público, abordando temas como relacionamentos, desilusões e a vida noturna com uma sinceridade crua e poética.

Os anos 1990 marcaram um período de menor produção discográfica, com apenas o lançamento de "Ao Vivo - Nosso Amor ao Armagedon" (1993). No entanto, foi também nesta década que Angela enfrentou seus demônios pessoais, lutando contra vícios que comprometiam sua saúde e carreira. A virada do milênio trouxe uma nova fase: após abandonar drogas, álcool e cigarro, a cantora retornou em grande estilo com "Acertei no Milênio" (2000), ensaindo tempos de renovação artística.

A televisão também fez parte da trajetória de Angela Ro Ro. Entre 2004 e 2005, apresentou o programa "Escândalo" no Canal Brasil, espaço que lhe permitiu compartilhar sua visão particular sobre música e cultura. O período também foi marcado pelo lançamento de "Compasso" (2006) e por um registro ao vivo no Circo Voador, reafirmando sua presença constante nos palcos cariocas.

Nos anos 2010, Angela manteve-se ativa com "Feliz da Vida!" (2013) e foi homenageada no projeto "Coitadinha Bem Feito: As Canções de Angela Ro Ro", reconhecimento da importância de seu repertório para novas gerações de artistas. Seu último trabalho de estúdio, "Selvagem" (2017), encerrou uma discografia que atravessou cinco décadas, sempre fiel ao estilo inconfundível que a tornou única no cenário musical brasileiro.

Angela Ro Ro deixa um legado construído sobre a autenticidade e a coragem de ser ela mesma em todas as circunstâncias, inclusive ao assumir sua homossexualidade de forma aberta e destenida, desfafiando tabus e preconceitos. Angela foi a cronista de uma geração que viveu intensamente as transformações culturais do Brasil pós-ditadura.