Maria Bethânia, a maior voz feminina viva da música brasileira, sobe ao palco do Vivo Rio neste mês para celebrar uma trajetória que começou há exatos 60 anos e se confunde com a própria história da MPB. Os shows deste e dos próximos três fins de semana, às sextas e sábados, coroam uma trajetória memorável. Com sua verve musical que anda de mãos dadas com a teatralidade, assistir Bethânia ao vivo é um ritual de amor à nossa canção popular, uma carta de amor às coisas do Brasil que esta artista escreve tão bem.
'Não era Tropicália nem Bossa Nova'
Em Fevereiro de 1965, Maria Bethânia estreava profissionalmente substituindo Nara Leão no histórico Show "Opinião", cantando "Carcará", ao lado de João do Vale e Zé Keti | Foto: Reprodução Facebook Maria Bethânia
Baiana de santo Amaro, Maria Bethânia Viana Teles Veloso estreou nacionalmente em 13 de fevereiro de 1965, no espetáculo "Opinião", substituindo Nara Leão por indicação da própria intérprete de "Diz Que Fui Por Aí". Naquele pequeno teatro de Copacabana, descalça e com o cabelo preso no coque que virou sua marca, Bethânia cantou "É de Manhã" e "Carcará" para um Brasil que vivia sob o jugo da ditadura militar imposta há quase um ano. Era o início de uma caminhada que a levaria a se tornar uma das vozes mais representativas do país.
Desde aquela estreia, a artista pavimentou um caminho próprio, distanciando-se dos rigores estilísticos da bossa nova é até mesmo do rótulo de combatividade política que o público tentou lhe atribuir após o sucesso de "Carcará". "Voltei cantora da noite, meio cafona, com música que ninguém cantava, de um repertório romântico mais brega, de que eu sempre gostei", declarou a cantora em entrevista de 2015. "Não era nem Tropicália nem bossa nova. Ambos lindíssimos, e eu passeei bem nos dois. Mas do meu jeitinho, sem me aprisionar", destaca a irmã de Caetano Veloso, detalhando suas escolhas artísticas.
Essa personalidade forte se manifestou desde cedo em escolhas artísticas que privilegiaram as cores fortes e os amores derramados do samba-canção, além de pérolas antigas pouco lembradas na época. O álbum "Recital na Boite Barroco", de 1968, representa bem esse momento inicial de afirmação de uma identidade própria, que se consolidaria ao longo das décadas seguintes.
A religiosidade, outro pilar fundamental de sua trajetória, começou a se manifestar de forma mais definida a partir de 1969, com a gravação de "Ponto do Guerreiro Branco". Filha de Oyá, também conhecida como Iansã, e iniciada por Mãe Menininha do Gantois, Bethânia incorporou ao seu repertório pontos tradicionais e canções de inspiração religiosa, como "As Ayabas" e "Iansã", parcerias de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em "Carta de Amor", do disco "Oásis de Bethânia" (2012), ela lista de maneira desafiadora as entidades que a acompanham: santos, orixás, espíritos indígenas, diferentes materializações das ancestralidades brasileiras.
A potência cênica de Bethânia, evidente desde a estreia no Opinião, se tornou maior a partir da parceria com o diretor Fauzi Arap (1938-2013). Juntos, desenvolveram uma linguagem que se tornou assinatura da cantora: roteiros que cruzam textos e canções, explorando ao máximo sua dramaticidade natural. O primeiro trabalho da dupla foi "Comigo me Desavim" (1967), mas a linguagem se consolidou nos anos 1970 com espetáculos como "Rosa dos Ventos" (1971), "A Cena Muda" (1974) e "Pássaro da Manhã" (1977).
Essa vigorosa carreira solo não lhe impediu de dividir o palco com o irmão e os amigos Gilberto Gil e Gal Costa nos Doces Bárbaros, grupo formado em 1976, com a finalidade de realizar uma turnê pelo Brasil para comemorar os dez anos de sucesso em suas carreiras individuais.
Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Caetano Veloso, os Doces Bárbaros | Foto: Walter Firmo
O show comemorativo dos 60 anos de carreira retoma exatamente essa sinergia entre músical e dramaturgia, tendo como principais referências "Rosa dos Ventos" e "A Cena Muda". Mas o espetáculo promete trazer inéditas em meio a esses clássicos bethanianos.
A discografia da artista registra momentos marcantes da música brasileira. "Mel" (1979) trouxe clássicos como a canção-título, de Waly Salomão e Caetano, "Cheiro de Amor" e "Da Cor Brasileira". "Dezembros" (1986) apresentou sucessos como "Anos Dourados", de Tom Jobim e Chico Buarque, e "Gostoso Demais", de Dominguinhos e Nando Cordel. "Memória da Pele" (1989) incluiu "Reconvexo", outra composição que Caetano fez especialmente para a irmã.
A partir de "Olho D'água" (1992) e, mais marcadamente, de "A Força que Nunca Seca" (1999), Bethânia se lançou num mapeamento afetivo do Brasil interiorano, que se tornou pilar de sua obra. Com tradução sonora do maestro Jaime Alem, seu parceiro musical por quase 30 anos, a cantora desenhou um país que captura com seu olhar e materializa em seu canto. O exemplo mais acabado dessa proposta se deu em "Brasileirinho", disco antológico que gerou espetáculo igualmente histórico.
Esse Brasil se manifesta mesmo em projetos conceituais específicos, como " As Canções Que Você Fez pra Mim" (1993), um álbum de releituas definitivas do cancioneiro de Roberto e Erasmo Carlos; Pirata" e "Mar de Sofia" (2006), dedicados às águas, "Que Falta Você me Faz" (2007), declaração de amor a Vinicius de Moraes, ou "De Santo Amaro a Xerém" (2018), parceria com Zeca Pagodinho. A Mangueira, onde foi homenageada em 2016 com o enredo "A Menina dos Olhos de Oyá", encarna esse Brasil de maneira nítida em "Mangueira — A Menina dos Meus Olhos" (2019).
Mangueirense, Maria Bethânia foi tema de enredo da escola e ajudou a verde e rosa a sagra-se campeã no carnaval | Foto: Divulgação
Celebrada em documentários como "Música é Perfume" (2005) e "Fevereiros" (2017), e pelos milhões de fãs que acompanharam a recente turnê ao lado de Caetano Veloso, Bethânia chega aos 60 anos de carreira como uma das artistas mais relevantes do Brasil, nação que alimenta a artista e que ela o alimenta.
SERVIÇO
MARIA BETHÂNIA - 60 ANOS
Vivo Rio (Av. Infante Dom Henrique, 85, Parque do Flamengo)