Uma festa iluminada pela arte de Candeia
Grupo Matriarcas do Samba celebra a obra do genial compositor
Na semana em que Antônio Candeia Filho, o Candeia, completaria 90 anos o grupo Matriarcas do Samba sobe ao palco do Teatro Rival Petrobras neste sábado (23) para homenagear o cantor, compositor e ativista da cultura afrobrasileira. O espetáculo reúne três gerações de mulheres que carregam no sangue a herança dos maiores nomes do gênero: Selma Candeia, filha do homenageado; Nilcemar Nogueira, neta de Cartola; e Vera de Jesus, neta de Clementina de Jesus.
A apresentação promete ser um mergulho na intimidade do universo do artista, com Selma compartilhando memórias dos 19 anos de convivência com o pai, morto precomente em 1978. Ela revelará histórias dos bastidores das rodas de samba que Candeia comandava nos quintais da família, momentos que moldaram sua compreensão sobre a essência do partido alto e da filosofia sambista.
Em depoimento a este repórter por ocasião do aniversário do pai, Selma revelou que amigos do samba iam tocar na casa de Candeia como forma de reanimá-lo após ter ficado paraplégico ao ser baleado na medula espinhal durante uma discussão de trânsito. "Mas os amigos e parceiros não deixaram ele na mão. Iam pra casa dele, organizavam rodas de samba. Até aquele momento eu e meu irmão não tínhamos a compreensão do que ele significava para o samba e para música brasileira", recorda.
O repertório percorre pérolas do cancioneiro do sambista como "Testamento de Partideiro", "Dia de Graça", "O Mar Serenou" e "Filosofia do Samba", composições que consolidaram Candeia como um dos pilares da MPB. O show também celebra a amizade e parceria musical entre o homenageado, Cartola e Clementina de Jesus, incluindo sucessos como "Marinheiro Só", "O Mundo É Um Moinho" e "O Sol Nascerá".
A noite contará com participações especiais de Tia Surica, Dorina, Leo Russo, Marcelinho Moreira e representantes das escolas de samba Portela e Rosa de Ouro, de São Paulo. Ailton Graça, ator e presidente da Lavapés Pirata Negro, também participará do evento, antecipando o enredo que sua escola desenvolverá sobre Candeia para o Carnaval de 2026.
Candeia foi guardião das melhores tradições do samba. Seu primeiro álbum solo, "Candeia" (1970), marcou o início de uma discografia que serviria de farol para as gerações futuras. "Raiz" (1971) trazia uma autoralidade quase griô, com composições que remetiam à ancestralidade afro-brasileira. Em "Samba de Roda" (1975), mostrou todo seu domínio nos improvisos do partido-alto. Em "Luz da Inspiração" (1977), o inquieto artista aprofundou sua investigação sobre a identidade negra no Brasil pós-abolição. Seu último trabalho, "Axé - Gente Amiga do Samba", finalizado pouco antes de sua morte em 1978, é considerado um dos discos mais importantes da história do gênero, uma síntese perfeita da filosofia musical e política do artista.
A luz de Candeia se espalhou através de parcerias memoráveis que enriqueceram nosso cancioneiro popular. Com Paulinho da Viola, criou "Minhas Madrugadas", uma das mais belas canções do samba moderno. Ao lado de Wilson Moreira e Waldir 59, assinou sambas-enredo antológicos para a Portela, chegando a emplacar seis sambas seguidos na escola. Com Martinho da Vila, compôs "Amor Não é Brinquedo".
Foi gravado por grandes nomes de nossa música, a começar por Tia Surica - a baluarte e presidente de honra da Portela foi quem mais gravou suas composições. Mas a lista é grande e traz nomes como Cartola, Clara Nunes, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Marisa Monte, Ney Matogrosso, Beth Carvalho, Elza Soares, Cristina Buarque, Alcione, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Arlindo Cruz e Teresa Cristina, entre outros.
Mais que compositor e intérprete, Candeia pavimentou os caminhos da resistência cultural. Crítico ferrenho da comercialização desenfreada das escolas de samba, denunciava o afastamento das agremiações de suas raízes comunitárias com a chegada de pessoas vindas de fora (figurinistas, coreógrafos, artistas plásticos, entre outros que estavam "profissionalizando" o Carnaval).
Em 1975, materializou esta visão ao fundar o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, espaço dedicado à preservação da autenticidade do samba e à valorização da identidade afrobrasileira. Desfilando pelas ruas do subúrbio, a escola não participava das competições oficiais do carnaval.
Neste período de rompimento com o establishment das escolas, lançou "Escola de Samba: A Árvore que Esqueceu a Raiz", um livro-manifesto escrito em parceria com Isnard de Araújo e publicado em 1977. A obra desnudou as contradições do carnaval comercial e propondo caminhos para o retorno às origens comunitárias das agremiações. Suas reflexões anteciparam debate que se intensificaria nas décadas seguintes. Candeia louvava o passado, mas tinha olhos para o futuro.
SERVIÇO
MATRIARCAS DO SAMBA CANTAM CANDEIA 90 ANOS
Teatro Rival Petrobras (Rua Álvaro Alvim, 33 - Cinelândia).
23/8, às 19h30
Ingressos entre R$ 50 a R$ 120