Marquinhos de Oswaldo Cruz e a ancestralidade à flor da pela preta

Sambista lança seu álbum 'Agbo Ato' no Teatro Rival Petrobras; trabalho inspira-se em viagem do artista à Nigéria numa conexão das tradições iorubás ao samba carioca

Por Affonso Nunes

Guardião das melhores tradições do samba, Marquinhos de Oswaldo Cruz mostra seu novo trabalho no Rival Petrobras

Aos 63 anos, Marquinhos de Oswaldo Cruz vive um momento singular em sua trajetória artística. Pela primeira vez em seis álbuns, o sambista assina contrato com uma gravadora para lançar "Agbo Ato", trabalho que será apresentado ao público no Teatro Rival Petrobras, nesta quinta-feira (26). O espetáculo, com direção artística de Leandro Vieira e direção musical de Marlon Sette, promete conduzir a plateia por uma jornada através das múltiplas vertentes do samba, revelando conexões ancestrais que transcendem fronteiras geográficas e temporais.

O título do álbum carrega significado profundo, nascido de uma experiência transformadora que o compositor viveu em 2024 durante viagem ao interior da Nigéria. "Agbo Ato", expressão iorubá que simboliza bons presságios, representa mais que uma escolha estética - é o resultado de um encontro visceral com as origens africanas que moldaram a cultura brasileira. "Essa viagem me fez compreender muita coisa. Antes, eu resistia a compor em iorubá por associá-lo à tradição baiana, mas hoje vejo que o samba nasce e renasce em muitos lugares", revela o artista, que encontrou na África ecos de sua própria infância no subúrbio carioca.

A experiência nigeriana despertou em Marquinhos memórias afetivas de Oswaldo Cruz, seu território de origem e inspiração. "Era como voltar à infância. As crianças parando de brincar para ajudar as senhoras mais velhas a carregar compras. Algo que se via muito na vida do subúrbio", recorda o sambista, estabelecendo pontes entre continentes através de gestos cotidianos que revelam valores comunitários preservados na diáspora africana.

Figura central na defesa das tradições do samba carioca, Marquinhos mantém vínculos profundos com a Portela, escola que considera inseparável de sua identidade artística. "O que vai pro mundo é o retrato daquele lugar", defende o compositor, que recusa convites para escrever para outras agremiações por acreditar que sua arte é indissociável do território que carrega no nome. Essa fidelidade geográfica e cultural se manifesta em iniciativas como o Trem do Samba e a Feira das Yabás, projetos que criou para preservar a memória de seu bairro.

O primeiro evento resgata tradição iniciada por Paulo da Portela, reunindo artistas em composições ferroviárias que partem da Central do Brasil rumo a Oswaldo Cruz, transformando cada vagão em palco para apresentações exclusivamente dedicadas ao samba. "A única exigência que fazemos para quem vai participar é que só toque samba nos vagões", explica Marquinhos, mantendo viva a estratégia histórica de driblar a repressão ao gênero musical através dos trens urbanos.

Já a Feira das Yabás ocupa a Praça Paulo da Portela, junto à antiga sede da escola de samba, criando o que o próprio organizador define como "um hub preto por excelência", espaço dedicado à preservação de valores culturais da região através de samba, jongo, gastronomia e artesanato. Essas iniciativas demonstram como Marquinhos articula passado e presente, transformando nostalgia em ação cultural concreta.

Em "Agbo Ato", a sonoridade reforça elos com tradições sambísticas através dos arranjos de Marlon Sette e da participação de músicos como Cláudio Jorge, Carlinhos Sete Cordas e Luizinho do Jêje. "O Cláudio Jorge disse que nós gravamos esse álbum à moda antiga. Ele está certíssimo e foi muito prazeroso", comenta o artista, satisfeito com o resultado que equilibra sofisticação e enraizamento cultural.

O repertório transita entre composições autorais e regravações significativas, como "Boiadeiro", partido-alto de Ventura lembrado por Paulinho da Viola durante evento do Trem do Samba. "Na hora dos versos, a melodia também ganhava improvisos, uma tradição que resgatamos na gravação", explica Marquinhos, que solicitou ao próprio Paulinho da Viola que cantasse a música para inclusão no disco, preservando a oralidade característica do gênero.

Faixas como "Meu Destino, Meu Ifá", parceria com Rogério Lessa, e "A Onça Morreu, O Mato É Nosso", composta com Marlon Sette, evidenciam a influência ancestral africana no trabalho. O álbum inclui ainda "Raiz da Memória", samba-enredo apresentado na Portela em 2021 que, segundo o compositor, "não era um samba pra avenida, mas para ser gravado".

Para Marquinhos, manter viva a tradição do samba de raiz representa desafio constante para sua geração. "Os mais velhos da Portela sempre me apoiaram. E Manacéa me dizia para fazer o que vinha no coração. Adotei esse ensinamento como regra. Manter isso sempre foi difícil para minha geração. Mas não vou fugir desse destino", declara o artista, assumindo papel de guardião de tradições que considera fundamentais para a cultura brasileira.

SERVIÇO

MARQUINHOS DE OSWALDO CRUZ - AGBO ATO

Teatro Rival Petrobras (Rua Álvaro Alvim, 33, Cinelândia)

26/6, às 19h30

Ingressos a partir de R$ 50