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A artesania sonora de Moreno Veloso

Moreno Veloso iniciou o processo de elaboração de 'Mundo Paralelo' em Lisboa durante a pandemia. O álbum viria a ser concluído já em terras cariocas | Foto: Caroline Bittencourt/Divulgação

Depois de um hiato de dez anos desde o último disco de estúdio lançado, "Coisa Boa" (2014), Moreno Veloso apresenta "Mundo Paralelo", álbum produzido por ele com dez canções, entre elas a faixa-título lançada, no final de 2023, como um single, e o samba de roda "A Donzela se Casou", que traz a participação da família Veloso. A única música não autoral do disco é a regravação de "Deixe Estar", composta por Marina Lima e Antonio Cicero e originalmente lançada pela compositora, em 1998, no álbum "Pierrot do Brasil".

O título do disco nos remete a uma outra realidade. Um mundo que nas palavras da música homônima também é transcendental, que vai além do ordinário, uma realidade mais bonita, mais alegre, uma realidade forte e rica que ultrapassa, em todos os sentidos, o que podemos encontrar no dia a dia comum. Um rápido vislumbre desse outro mundo se dá justamente no carnaval e mais precisamente na ladeira do Curuzu no bairro da Liberdade em Salvador, na Bahia, numa noite de sábado.

O disco com suas dez faixas foi todo delicadamente construído em torno dessa visão transcendente do que pode ser melhor mesmo nas passagens mais conturbadas e desafiadoras da vida como foi a pandemia de covid-19, em meio à qual o disco foi inicialmente concebido.

O trabalho é uma projeção de imagens evidentemente positivas que apontam para um mundo mais feliz mesmo quando o entorno imediato esteja em total desacordo com a felicidade. É mesmo um mundo paralelo.

Todo gravado em estúdios caseiros entre Lisboa e Rio de Janeiro e contando com a participação de amigos e parentes, o disco, que ficou dois anos em construção, vem agora mostrar composições novas e velhas como as parcerias com Quito Ribeiro: "Presente de Natal" e "Vista da Janela" esta última que começou a ser feita no ano de 2002 só não é mais antiga do que a música "Deixe Estar" de Marina Lima e Antonio Cicero.

A feitura desse disco se deve, como sempre, à ajuda dos amigos e parceiros sendo o núcleo principal o estúdio Cave que ficava no porão da casa do Domenico Lancellotti em Lisboa e que serviu como ponto de encontro para iniciar os trabalhos de gravação com Ricardo Dias Gomes, Rodrigo Bartolo e Pedro Sá e de onde vieram seis das dez bases gravadas para o disco. Chegando de volta ao Rio, as gravações continuaram com a presença de Alexandre Kassin, Alberto Continentino, Luís Filipe de Lima, Bruno Di Lullo, Thiago Queiroz, Stephane Sanjuan, Paulo Mutti, Tom Veloso, Felipe Fernandes, Thiago da Serrinha, Kainã do Jêje, Marcelo Costa e Jaques Morelenbaum.

As participações vocais são também especiais com Tiganá Santana em "Mundo Paralelo" que também é de sua autoria, a voz da Nina Becker em "Um Dois e Já" e a mescla instigante das vozes da família Veloso com Maria Bethânia, Caetano, Zeca e Tom participando do samba de roda "A Donzela se Casou".

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Faixa a faixa, por Moreno

Moreno gravou uma faixa com Caetano, Bethânia e os irmãos | Foto: Caroline Bittencourt/Divulgação

Mundo Paralelo (Carlos Rennó, Tiganá Santana e Moreno Veloso): Música composta a partir da bela letra de Carlos Rennó e de sua proposta para que fizéssemos, eu e Tiganá, a musicalização de suas palavras. É mais uma ode ao Ilê Aiyê que faz parte da minha história desde criança quando compus com meu pai "Um Canto de Afoxé Para o Bloco do Ilê", mas desta vez em parceria com um dos filhos diretos do Mais Belo dos Belos, Tiganá Santana. Na gravação, a percussão do Marcelo Costa transformou a faixa numa espécie de samba afro.

Um Dois e Já (Quito Ribeiro e Moreno Veloso): Música de inspiração japonesa e influências do Mali com imagens e sons hipnotizantes que ganhou a presença de Nina Becker nos vocais e a percussão de Stephane Sanjuan para complementar a base gravada em Portugal.

Presente de Natal (Quito Ribeiro e Moreno Veloso): Samba composto no dia do Natal de 2017 e que foi finalizado um ano depois com uma letra de meu compadre Quito Ribeiro. Considero ela como um verdadeiro presente de Natal e a música ganhou esse título por essa razão.

Bailando (Piero Piccioni - versão em espanhol de Bruno Di Lullo e Moreno Veloso): Eu e Bruno Di Lullo estávamos em turnê pela Europa quando num dia cinzento em algum aeroporto, acho que na Alemanha, fomos tomados por uma saudade imensa dos nossos filhos. Era Dia dos Pais. Ele, como eu, tem um casal de filhos: uma filha mais velha e um menino mais novo. Bruno me mostrou uma música orquestral com uma melodia muito linda do compositor italiano Piero Piccioni que fez tantas trilhas sonoras para cinema e me convidou para escrever uma letra sobre ela. O tema original se chama "Mexican Dream" e faz parte de um filme intitulado "Colpo Rovente". A gravação traz o próprio Bruno tocando um sintetizador Juno 106 sobre a base gravada em Portugal.

Unga Dorme Nesse Frio (Moreno Veloso): Composta para o meu filho José numa noite de inverno, essa canção de ninar já foi lançada no álbum solo de voz e violão "Every Single Night" que gravei em casa durante o confinamento de 2020 e que saiu em CD pelo selo de Chicago Corbett vs. Dempsey no ano seguinte. O título traz a palavra unga que vem da raiz nórdica ung que significa "jovem" e é uma das formas que uso para chamar meu filho.

A Donzela Se Casou (Moreno Veloso): Esse samba de roda nasceu espontaneamente durante uma passagem de som do show "Ofertório" enquanto eu e meu irmão Tom tocávamos distraídos "How Beautiful Could A Being Be" e me veio à cabeça uma história que ouvi no Recôncavo Baiano sobre como dançar o samba miudinho arrastando e batendo os pés ritmicamente servia para alisar o chão de terra de uma casa nova que estivesse sendo construída, de forma que se organizava um samba especificamente para isso, onde a festa ajudava na construção. Convidei minha família para participar da gravação me ajudando metaforicamente a construir essa nova casa, consolidando a base desse "Mundo Paralelo". Podemos então ouvir as vozes de minha tia Bethânia, de meu pai Caetano e de meus irmãos Zeca e Tom se alternando sobre esse ritmo característico do samba de roda.

Vista da Janela (Quito Ribeiro e Moreno Veloso): Das muitas composições que fiz com meu compadre Quito Ribeiro essa em especial ficou durante mais de duas décadas adormecida esperando o momento certo de vir à luz. Durante esse tempo ela amadureceu e ganhou novos versos chegando ao disco de forma leve e bonita. Na gravação contei mais uma vez com os amigos Thiago Queiroz nos sopros e Alberto Continentino no baixo acústico complementando a base vinda de Lisboa.

É de Hoje (Moreno Veloso e Luís Filipe de Lima): Recebi a melodia desse samba das mãos do grande músico carioca Luís Filipe de Lima e me diverti muito escrevendo esses versos que falam da Bahia e do recôncavo de forma descontraída e alegre. Para mim essa música representa uma ponte entre o samba do Rio e o de Santo Amaro e de certa forma isso foi traduzido na sonoridade da gravação com o próprio Luís Filipe tocando seu violão de sete cordas junto com o cavaquinho e o repique do Thiago da Serrinha sobre meu prato-e-faca e a turma da base portuguesa, além da presença do agogô do grande amigo Stephane Sanjuan.

Ninguém Viu (Quito Ribeiro e Moreno Veloso): Composta para a abertura de um filme argentino chamado "Una a Novia de Shanghai" esta canção já foi gravada também no disco ao vivo do show "Ofertório" sendo agora a segunda regravação. Como na versão original que foi para o cinema, ela foi toda construída em dupla com Felipe Fernandes que ficou a cargo das guitarras, do lapsteel e do baixo elétrico e traz sonoridades especiais com a mistura do pequeno instrumento chinês erhu com o violoncelo, o ukulele e as percussões.

Deixe Estar (Antonio Cicero e Marina Lima): Esta é a última faixa do disco e a única não autoral. É uma regravação dessa música que Marina Lima lançou em seu lindo álbum "Pierrot do Brasil" de 1998 e que faz parte do meu imaginário poético desde então. Ela reflete precisamente uma faceta importante desse mundo paralelo: "Deixe estar, vai passar" que é justamente o momento do desencontro cheio de esperança onde ainda é possível sentir a proximidade do que está fora de alcance e com isso também a possibilidade de uma reviravolta na história, porque às vezes a parte mais traiçoeira do amor é que ele pode mesmo florescer de forma inesperada. A gravação foi feita no estúdio do Kassin comigo na voz e no violão, Alberto Continentino no baixo acústico e o próprio Kassin no sintetizador com todos tocando ao mesmo tempo como se estivéssemos em um palco. A interpretação foi registrada assim, ao vivo, sem muito espaço para correções e na terceira ou quarta vez que tocamos a música chegamos ao resultado que está no disco com apenas mais alguns sons dos sintetizadores que o Kassin acrescentou depois.